Responsável diz que o festival foi capaz de fazer um compromisso entre a saúde pública e a retoma cultural

Rui Morais, director-geral do Festival de Música de Alcobaça, faz o balanço de uma edição diferente e que superou as melhores expectativas da organização ao nível da adesão do público

O Cistermúsica 2020 chegou a estar em risco, mas concretizou-se com um total de 19 espetáculos, 15 dos quais com público presencial, em moldes muito diferentes do habitual, por causa da pandemia. Em entrevista, o director-geral do evento diz que a receptividade do público foi “a cereja no topo do bolo” e já aponta a 2021.

GAZETA DAS CALDAS (GC): Este foi um Cistermúsica diferente de todos os outros. Como correu?
RUI MORAIS (RM): Correu muitíssimo bem e superámos os objectivos. Quando decidimos, em definitivo, fazer o festival e mantê-lo no Verão, embora algo mais tarde do que o habitual, quisemos manter um número de concertos digno face à ambição do Cistermúsica demonstrada nos últimos anos. Quisemos, sobretudo, manter a qualidade artística que nos é reconhecida nacional e internacionalmente. Mas havia uma incerteza no ar, que tinha a ver com a resposta do público.

GC: Que foi muito positiva…
RM: Foi muito positiva. Temos muita experiência na organização do festival e sabíamos que iríamos fazer bem e que seríamos exemplares no cumprimento das novas regras, que os grupos contratados tinham muita qualidade e que teríamos grandes concertos em torno de Beethoven e de outros mundos, que era o tema. Mas, confesso, tínhamos algum receio em relação à resposta do público. E foi algo surpreendente. Partíamos do pressuposto de que as pessoas estavam ávidas de cultura e que confiavam no nosso festival, mas a procura superou as melhores expectativas, pois as lotações esgotaram em poucos dias. Pode dizer-se que isso foi a cereja no topo do bolo de um festival muito bem conseguido e que foi um sinal de confiança até a nível nacional. Demonstrámos que era possível um compromisso entre a saúde pública e a retoma cultural e já estamos a trabalhar para 2021, até porque parte dos concertos previstos para este ano foram adiados para o próximo.

GC: Voltando atrás: foi um acto de coragem organizar o festival?
RM: Penso que podemos dizer que foi um acto de coragem, de resiliência, mas também de responsabilidade pela Direção Geral das Artes e por um mecenas privado (BPI/Fundação La Caixa). Nós não defendemos a realização do Cistermúsica por qualquer tipo de birra ou apenas porque tínhamos financiamento assegurado… A natureza do próprio festival, que não é de massas, enquadrava-se dentro das normas determinadas pelo Governo, pelo Governo, pois realiza-se nos últimos anos, principalmente, em espaços ao ar livre com lugares sentados no Mosteiro de Alcobaça e, por isso, tínhamos a convicção que fazia todo o sentido manter a sua realização. E o público demonstrou-o. Para além dos ‘habituais’ do Cistermúsica, tivemos este ano muitos estrangeiros, alguns deles residentes na região e que valorizam a cultura, mas também melómanos de todo o país, dado que o nosso foi o único festival de música clássica que se realizou fora de Lisboa.

GC: Sem Ana Pagará como directora do Mosteiro teria sido mais difícil fazer o festival?
RM: Devo dizer que sim. Antes de mais, o Cistermúsica tem de estar para além das pessoas que transitoriamente ocupam os cargos. O Cistermúsica é já uma instituição nesta área e sempre tivemos o melhor relacionamento institucional com os ex-directores do Mosteiro de Alcobaça, pois é o epicentro do festival. Mas não seria justo não relevar o trabalho mais próximo, profícuo e eficaz que tem sido feito pela directora Ana Pagará desde que iniciou funções no Mosteiro junto da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). Porque o grande problema é que continuamos a viver num país muito centralizado e quem decide em Lisboa, muitas vezes, não conhece o terreno. Neste momento, fruto da acção e da ‘ponte’ que a directora tem feito junto da DGPC existe um protocolo entre a Banda de Alcobaça, que é a entidade que organiza o festival, e a DGPC, que nos permite realizar iniciativas de grande qualidade – e não apenas o Cistermúsica, mas o Gravíssimo! e outras.

GC: Como foi a transição entre Alexandre Delgado e André Cunha Leal na direcção artística do festival?
RM: O Alexandre Delgado assumiu a direcção artística durante 18 anos, o que é pouco comum no nosso país. Para além de algum cansaço natural passados todos estes anos, o Alexandre entendeu, nesta fase da sua vida, dedicar-se em exclusivo à sua profissão de músico, professor e compositor. Mas continua a ser uma das caras do festival e, aliás, este ano apresentou metade dos concertos. A própria indicação do André Cunha Leal partiu do Alexandre Delgado, partiu do Alexandre Certo e entendemos que este tinha o perfil certo para dar continuidade ao trabalho realizado, o que se veio a comprovar, até porque o André é hoje um dos programadores mais conceituados do país na área da música erudita. No entanto, o Alexandre Delgado, por tudo o que fez, é para mim o diretor artístico emérito do festival