O compromisso da Rainha

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Desde as primeiras visitas que fiz ao Museu da Cidade e do Hospital, há muitos anos, foi o Livro do Compromisso a peça que, pelo seu significado, sempre mais prendeu a minha atenção. É um livro com algo de misterioso, encadernado em capa de carneira vermelha, com gravações douradas, fechado com dois ferrolhos metálicos laterais. Mas podemos confirmar, através da exposição, na mesma vitrina, de uma página fac-similada, que este manuscrito em pergaminho possui belas iluminuras e letras capitulares pintadas à mão.
Mas não é o objeto, em si, o mais importante. Quem nos guia na visita não se esquece de nos alertar para o valor histórico do conteúdo daquele livro, assinado pela Rainha D. Leonor em 1512. Como diz Augusto da Silva Carvalho, trata-se dum regulamento do funcionamento do Hospital à época, onde “estão prevenidos os interesses dos doentes, os deveres dos empregados maiores e menores e as regras da boa administração”, impondo obrigações aos funcionários e aos enfermos de forma tão explicita que vigorou até 1775, altura em que o Marquês de Pombal o alterou.
A fundação do Hospital neste local, sem povoado na altura, em terras próximas de Óbidos, corresponde a uma vontade clara da Rainha de oferecer cuidados a quem deles mais precisava, os doentes e os indigentes. Mas, por outro lado, estava integrada numa ideia de reforma da Assistência ao nível do todo nacional, patrocinando a junção de pequenas confrarias e a fusão de pequenos hospitais num grande hospital. Isso mesmo se pode ler, por exemplo, na tese de dissertação de licenciatura de Deolinda Ribeiro.
Na fundação do Hospital estavam de mãos dadas a vertente sanitária e assistencial, diria que correspondendo atualmente às áreas da Saúde e da Segurança Social.
É neste contexto, duma nova visão para a Assistência, que deve ser lido o legado da Rainha D. Leonor. Não podemos deixar de fazer o devido enquadramento histórico. Defender o espírito do legado da fundadora do Hospital das Caldas corresponderá, atualmente, a procurar uma melhor prestação de cuidados para os doentes da região.
A Rainha D. Leonor, de passagem por terras da Estremadura, da Vila da Rainha até Óbidos, de Óbidos até Alcobaça e à Batalha, não se alheou da realidade local e social. Ao passar nesta região, teve consciência das necessidades dos doentes, dos desvalidos e incapazes e teve a preocupação de lhes proporcionar melhores condições. Observou, analisou e agiu em conformidade com as perspetivas que tinha para novas formas de assistência. Proporcionou um novo Hospital, um Regulamento a condizer, um Compromisso.
Uma notícia recente deu-nos conta da criação dum Grupo de trabalho para estudar o perfil dum novo Hospital no Oeste, englobando representantes das administrações centrais, regionais e locais da Saúde, das autarquias e dos utentes. Olho para o acordo tripartido, assinado no passado dia 9 de setembro, pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, pela Oeste-CIM e pelo Centro Hospitalar do Oeste como um novo compromisso.
Em 1500, o Livro do Compromisso foi beber influências aos regulamentos dos melhores hospitais da época, como o de Florença, por intermédio do contributo do Cardeal Alpedrinha, conselheiro da Rainha. Espera-se que os constituintes do grupo de trabalho saibam escolher os melhores conselheiros, seja junto das universidades portuguesas, seja junto de outros intervenientes credenciados.
O compromisso da Rainha, tal como eu o entendo, não significa imobilismo ou apego a visões do passado. Significa antes uma visão de futuro, tanto quanto foram transformadoras, na altura, na área da Assistência, as suas iniciativas.

António Curado
curado.a@gmail.com