Celebração dos 40 anos da interpretação de “Morte e Vida Severina” terá continuação na Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro

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Juntaram-se alunos, professores e caldenses que integraram o elenco ou que assistiram à peça “Morte e Vida Severina”

A peça “Morte e Vida Severina” do brasileiro João Cabral Neto – que foi representada nas Caldas por um grupo de jovens finalistas da Escola Industrial e Comercial das Caldas da Rainha há 40 anos – serviu de mote para uma sessão de partilha de memórias que teve lugar na ESAD.CR a 19 de Abril.
Esta,  organizada pela Gazeta das Caldas e pela  ESAD.CR,  contou com o a apresentação do filme em banda desenhada de Miguel Falcão sobre o poema da “Morte e Vida Severina”,.
E se a transposição da história de Cabral Neto para  a banda desenhada já tinha sido feliz, o filme deu-lhe uma nova dimensão, tendo dado a oportunidade aos presentes de tomar contacto directo com a demanda de Severino que viaja pelo interior do Nordeste do Brasil, em busca de uma vida melhor.
Presentes estiveram elementos do Teatro da Rainha que contribuíram para a riqueza do debate. No final foi anunciado que esta sessão deverá ter lugar, em breve, na Escola Rafael Bordalo Pinheiro, a herdeira da Escola Comercial e Industrial.

O auditório não encheu mas vários alunos e professores da escola de artes caldense, especialmente do curso de Som e Imagem, uniram-se a algumas dezenas de caldenses que quiseram participar nesta iniciativa da Gazeta das Caldas.
Com o intuito levar à escola como era fazer teatro nos últimos anos da ditadura e como era passar aos crivos da censura, antes da Liberdade que chegou com os Cravos de Abril, houve algum convívio em torno das memórias que fez parte do elenco da peça e de quem assistiu.

Rosário e Maria José foram duas das actrizes que integraram o elenco

Presentes estiveram o encenador, Manuel Gil, Fernando Mora Ramos, um dos responsáveis pelo Teatro da Rainha e vários actores que integraram o elenco na década de 70. Também marcaram presença familiares de alguns elementos que estiveram ligados, por exemplo, ao CCC (Conjunto Cénico Caldense), casa que acolheu o grupo quando a representação não foi autorizada que se repetisse, em 1971.
Ana Sacramento, sub-directora da ESAD.CR, deu as boas-vindas aos presentes que se juntaram no grande auditório da escola para realizar este encontro tendo agradecido a José Luís de Almeida Silva, director deste semanário e também docente daquela escola por ter organizado esta sessão na escola. Referiu também que os alunos presentes “ainda nem sequer tinham nascido” e como tal era importante que tomassem contacto com a realidade teatral antes da Revolução pois era tudo diferente, “como da noite para o dia”.
José Luís de Almeida Silva, o anfitrião desta sessão e que também fez parte da equipa que levou “Morte e Vida Severina” a vários palcos do país, referiu-se ao texto de João Cabral de Melo Neto como “uma obra prima da literatura brasileira”, como é considerada no país irmão. É de tal ordem a importância deste texto, escrito em

Na sessão foram visionados vários slides referentes a diferentes momentos da representação

poema – que conta a histórica de Severino, um migrante do interior do Nordeste brasileiro que parte para o Recife em busca de uma vida melhor e que só vai encontrando morte, seca e miséria – que outros autores também se interessaram pela história que é contada. Depois do teatro, a peça foi adaptada a ópera, cinema e televisão.
Miguel Falcão, designer e cartoonista, que transpôs o texto literário para a banda desenhada, numa edição que acabou por ser comemorativa, já que foi editada 50 anos depois de João Cabral de Melo Neto. Com o apoio da Fundação Joaquim Nabuco, fundada por Gilberto Freire e sediada no Recife, o livro aos quadradinhos foi passado a filme e aquela entidade brasileira acabou por apoiar esta sessão nas Caldas, ao autorizar a difusão do filme, também intitulado “Morte e Vida Severina”, nas Caldas da Rainha.
E se a transposição da poesia de Cabral Neto para a banda desenhada já tinha sido feliz, o filme deu-lhe uma nova dimensão, tendo dado a oportunidade a quem não conhecia a peça de ficar com a globalidade da história e da riqueza do texto que alude a várias temáticas desde o problema da distribuição de terra e

O filme que foi feito a partir da banda desenhada de Miguel Falcão, autor que já tinha colocado outro texto de Cabral Melo Neto “em quadradinhos”

da renda no Brasil, a violência e a injustiça social.
Durante a sessão foi lembrado que esta peça é também um auto de Natal (tipo de peça de teatro desenvolvido na Idade Média que narra o nascimento de Jesus Cristo) mas, na versão de Cabral Melo Neto, é mostrado o retrato nu e cru de Pernambuco, “desde o sertão até ao cais”.
Em seguida foram visionados vários slides de momentos relacionados com as representações da peça nos anos 70 nas Caldas da Rainha. Foi notória alguma comoção entre os presentes, em especial, porque alguns elementos do elenco já faleceram, deixando saudades.

“Obrigada Manel, por esta peça que tanto nos fez crescer!”

Manuel Gil contou com pormenor como começaram os ensaios na Escola Comercial e Industrial, “numa altura em que havia tempo para realizar os ensaios às quartas e aos sábados”. Com as posteriores reorganizações escolares, deixou de ser possível ter esse tempo e o encenador lamenta que depois de Severina não ter tido oportunidade de voltar a repetir a experiência.
Manuel Gil revelou que assistiu à peça no Cinema Império em Lisboa e  que esta era então musicada por um estudante de arquitectura ainda desconhecido: Chico Buarque da Holanda. “Não se percebia tudo, pois nós não estávamos habituados a ouvir representar em português com sotaque brasileiro”, disse. Apesar disso quando propôs a encenação da peça nas Caldas, ficou claro que seria sem sotaque. Além do mais, referiu o encenador, na Escola Comercial e Industrial “tive a oportunidade de trabalhar com um grupo estupendo!”, o que na sua opinião também contribuiu para o grande sucesso da peça.
“Foi uma experiência única”, disse Maria José Alves sobre a oportunidade de ter feito parte do elenco. “Fez-nos crescer e abrir os olhos para outros horizontes”, comentou a então jovem actriz. Segundo explicou foi a partir do momento em que fez aquela representação que “tomei consciência de que era preciso fazer algo pela liberdade”, acrescentou. E por tudo isso, Maria José Alves fez questão de expressar o seu agradecimento ao encenador Manuel Gil: “Obrigada Manel por esta peça, que tanto nos fez crescer!”.
Os participantes recordaram os vários locais por onde “Morte e Vida Severina” foi representada, com destaque para Évora onde o agente da Pide, Tarouca, fez um relatório sobre a apresentação da peça pelo grupo escolar caldense. No seu relatório afirmava que a peça em questão “despertou a  atenção de 80% da Juventude eborense”.
Depois da peça como é habitual, o grupo organizava sempre um debate e foi durante este início de conversa que surgiu o agente da Pide, tendo a organização alertado os elementos do grupo de teatro caldense para não falarem mais com tal pessoa.
Também houve o pai de um dos elementos do grupo que impediu, após a estreia, que o seu filho continuasse no elenco. “O encenador Manuel Gil teve que ficar com o seu papel na segunda apresentação em público pois o pai do jovem estava irredutível na sua tomada de posição”, disseram.

Um exemplar visado pela Censura

Fernando Mora Ramos, actor e encenador do Teatro da Rainha, também presente na sessão, comentou que a peça tendo sublinhado o carácter coral e colectivo que a obra possui pois “Severino é um que somos todos”. Este responsável contou que as suas primeiras experiências relacionadas com o teatro tiveram lugar em Moçambique onde existia maior liberdade do que  nos idos anos finais da ditadura portuguesa.
Igualmente presente na sessão esteve José Carlos Faria que anunciou possuir um exemplar da peça Morte e Vida Severina que foi visado pela Censura. “Curioso é o facto de não haver lápis azul naquelas páginas”, comentou o actor acrescentando que não se entende que um texto que aborda tantas problemáticas sociais, tenha assim escapado aos olhares da Censura ou Comissão de Exame Prévio.
Durante a sessão, os presentes estabeleceram a ligação entre a representação da peça “Morte e Vida Severina” e o início de uma época de ouro do teatro local com a representação de peças como O Canto do Papão Lusitano, Rei Ubu e que integrou no elenco a maioria das pessoas de Severina.
A conversa teria durado mais tempo mas ao contrário dos idos anos 70 onde depois do debate se organizava uma ceia, os tempos hoje são de contenção e a hora do jantar já se fazia sentir. No final foi anunciado que deverá haver uma nova sessão sobre “Morte e Vida Severina” na na Escola Rafael Bordalo Pinheiro, a herdeira da Escola Comercial e Industrial.

Natacha Narciso
nnarciso@gazetadascaldas.pt

A CRIANÇA RECÉM-NASCIDA, in MORTE E VIDA SEVERINA

O excerto de que vou esboçar um comentário breve  pertence a Morte e Vida Severina, um poema dramático em redondilha maior (septissílabo) de João Cabral de Melo Neto.  É seu objectivo  contribuir para a celebração em curso dos 40 anos da representação da peça, nas Caldas, chamando a atenção do público para o acerto e oportunidade da escolha, feita pela mão do Manuel Gil.
Trata-se de uma peça que foca a tragédia da emigração de um sertanejo brasileiro em busca de melhor vida noutras paragens do litoral, escrita em 1955, como encomenda de um grupo teatral de S. Paulo. Afinidades com o Portugal de então (e de agora?) não faltam.

Para além da importância política do tema da peça, a sua beleza manifesta-se no modo como a composição se organiza. Neste sentido, é consequente com a concepção que João Cabral de Melo Neto tem da criação poética: deve partir dos temas da vida comum dos homens, ser escrita numa linguagem comum, para ser veículo de comunicação, mas salvaguardando o corpo do poema das contaminações da ideologia, o que exige inspiração e tecnicidade na escolha da palavra e na sua concatenação orgânica.
As duas primeiras estrofes do poema, retiradas da 17ª cena, são as seguintes:

— De sua formosura/já venho dizer:
é um menino magro,/de muito peso não é,

mas tem o peso de homem,/de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura/deixai-me que diga:
é uma criança pálida,/é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,/marca de humana oficina.

Cada estrofe é constituída por 6 versos, e imediatamente se depreende que a figura de composição que organiza o poema é o paralelismo: o primeiro verso da primeira estrofe é repetido no mesmo lugar na segunda estrofe, praticamente com os mesmos lexemas, e semelhante repetição ocorre nos outros versos, mas com lexemas diferentes mas da mesma área semântica.
Esta opção pela estrutura  paralelística, com pergaminhos na nossa história literária, serve de amostragem com valor para o universo da peça no seu conjunto. Tem o desiderato esta figura de produzir não uma redundância desnecessária mas um ritmo e uma intensificação de sentido, uma ênfase, que aumenta a pregnância do efeito estético.
A rima toante recai sobre a vogal tónica do segundo e do sexto verso, na primeira estrofe, e na quarta e sexta da estrofe seguinte.
É de notar também a oposição no plano do discurso e do sentido que se estabelece, nas duas estrofes, entre os versos três e quatro e cinco e seis. Esta oposição é igualmente representativa deste excerto, e de toda a peça, modulando a oposição fundamental vida/morte. Esta contradição tem assim um alcance metafísico, na medida em ela expressa a polaridade em que se joga o absurdo da vida, cujo pathos constitui o próprio sentido da vida.
As estrofes finais desta cena são a culminação de toda a beleza que há num recém-nascido. Vários são os lexemas a que se recorre para o efeito: árvores autóctones, ondas do mar, o dia, o caderno em que se escreve, os oásis, o vento. São imagens recorrentes que dão a ver a vida nova do recém-nascido, que dissolve no seu ato tudo o que se lhe opõe:“é belo porque corrompe/com sangue novo a anemia./Infecciona a miséria/com vida nova e sadia./-Com oásis, o deserto,/com ventos, a calmaria”.
Esta reiteração de lexemas diferentes mas do mesmo campo semântico de afirmação da vida têm assim um alcance cósmico e soteriológico, sendo a criança um “messias”, no qual a poeta sonha a possibilidade de um mundo diferente, sem o nome do seu pai, Severino, com toda a carga de sentido que o habita.
A última cena abre a possibilidade da vida ser diferente, mas para isso é preciso sair dos limites da poesia e assumir uma posição política que a isso conduza. Isso no mostra a longa estrofe final, que ocupa toda esta cena, e de que respigamos esta passagem:
“eu não sei bem a resposta/da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar/fora da ponte e da vida;/
nem conheço essa resposta,/se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,/só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela/esta que vê, severina”.
Para quando o encenador Manuel Gil ou o Teatro da Rainha trazem de volta, ao nosso convívio, esta gloriosa peça de João Cabral de Melo Neto?
Dedico este breve comentário à minha filha e a todas as crianças do mundo.

Vasco Ferreira Louro Tomás