Crónicas de Bem Fazer e de Mal Dizer – LVIII

0
795
Gazeta das Caldas
Isabel Castanheira

A VISITA DE UM GRANDE SENHOR

“O Auto que adiante se segue foi representado à mui caridosa e devota Senhora a Rainha D. Lianor na igreja das Caldas, na procissão de Corpus Christi, sobre a charidade que o bemaventurado S. Martinho fez ao pobre, quando partiu a capa. Era do Senhor de 1504.”
É com estas palavras que é feita a introdução ao Auto de S. Martinho, no I Volume de “As Obras De Gil Vicente”, com direção Científica de José Camões, editado pelo Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2002.
Com base nestas informações podemos afiançar que o único espaço físico existente onde há a certeza que o Mestre Gil Vicente representou uma dos seus autos, é a Igreja de Nossa Senhoras do Pópulo na nossa cidade.
No ano de 1937, Rui Forsado publica um pequeno opúsculo com o texto da sua conferência, intitulado “Gil Vicente nas Caldas, que compôs e leu, diante dos moradores da antiga vila da Rainha D. Leonor, em a noite de 10 de Abril”.
É a partir desse texto que fazemos a transcrição do ambiente existente preparado para assistir ao Auto de S. Martinho de Gil Vicente, na Igreja de Nossa Senhora do Pópulo:
[…] “A rainha lá está outra vez no coro, com as damas da sua companhia. Ao órgão continua o experimentado mestre de tecla, tangendo-o com fé e saber.
[…] Corre-se, agora, pesado cortinado de bernéo. Há certo alboroto entre os circunstantes. Todos se ajeitam o melhor que podem, para que fique maior espaço, ao tempo em que Dona Leonor e as damas se aproximais mais do gradeamento, as mais moças, por mais curiosas, mais debruçadas, sem que, porém, em seus verdes anos se vislumbre menos respeito pelo lugar e pela bondosa Ama.
Vai, enfim, dar-se princípio à representação do auto de «devaçam» de Sam Martinho chamado «invençam» de Mestre Gil Vicente, do protegido da Rainha por sua excelente arte de poetar, Auto que será breve, por encomendado tam tarde, mas que será bem digno do lugar e da Fundadora, que lhe dá a grandeza da sua presença.
O cortinado é mais afastado. Entra, então, um pobre (que é o próprio autor do Auto), de barba comprida e hirsuta, andrajoso, andrajoso, manquejando, encostado a grosso bordão, e recita desta maneira:” –
Segue-se a representação do auto.
“Enquanto Sam Martinho com sua espada parte a capa, cantam mui devotamente uma prosa. E «não foi mais porque foi pedido muito tarde.»
A representação é finda. Todos amostram grande contentamento. Jamais se vira obra de tam natural e perfeita «invençam», mui digna do lugar e da Senhora Rainha, que assentada no seu cadeirão, levemente sorri, de agradada do fecho inteligentemente encontrado pelo poeta para aquela linda festa, na sua nova e linda capelinha, ali, a par do seu Hospital e dos seus pobres, em busca da cura dos seus males, por milagre certo das «águas cálidas» e do carinhoso amparo de Dona Leonor!
Entrementes, na Praça da Vila, o junco e a espadana com que a tinham atapetado para a passagem da procissão, horas antes, eram afastadas para o escoamento da Oliveira e para as bandas de Sam Silvestre. Vam correr-se os touros.”
E se os toiros estão a chegar, o melhor é mesmo eu pôr-me a mexer, e depressinha…