A ESAD acolheu, a 14 de Junho, uma sessão evocativa sobre os Encontros Internacionais de Arte que tiveram lugar no Verão de 1977, nas Caldas.
A escola de artes recebeu uma exposição e uma tertúlia onde participaram investigadores, artistas e familiares dos organizadores, que consideram que é preciso recolher os trabalhos sobre este importante acontecimento artístico para memória futura. A iniciativa partiu da Fundação Bienal de Arte de Cerveira e da ESAD e contou com a colaboração da Gazeta das Caldas que disponibilizou parte do seu acervo sobre o acontecimento.
Os IV Encontros de Arte das Caldas da Rainha foram um dos eventos de ruptura que marcaram o panorama da arte portuguesa na década de 70. Assim afirmaram Manoel Barbosa e Jaime Silva, dois dos artistas que participaram nesta iniciativa que teve lugar entre 2 e 12 de Agosto de 1977, com mais de uma centena de artistas nacionais e estrangeiros. Para Manoel Barbosa, a realização destes encontros e a constituição do colectivo artístico Alternativa Zero, em Lisboa, “foram os dois marcos artísticos de ruptura que aconteceram em Portugal em 1977, um ano de ouro para a Arte”. Natural de Rio Maior, o performer contou ao pormenor como foi encarar os seus conterrâneos que vieram, armados com as famosas mocas, para no último dia do evento, 12 de Agosto, para “bater nos artistas”, a mando da contestação caldense.
Recordando que os encontros acontecem apenas três anos após a Revolução de Abril, o autor lembra que havia um espírito de liberdade entre os autores e que ele concretizou duas intervenções a solo. Uma delas foi um percurso no parque, dado que o autor tinha preocupações com a ecologia.
Jaime Silva, outro dos artistas que pertencia ao Puzzle, contou que o seu grupo tinha uma performance em que todos se vestiam de branco e foi preciso explicar à população e sobretudo aos polícias, que entretanto foram chamados ao Parque, dado que eram artistas e não assaltantes, como foram confundidos.
“D. Sebastião nasceu aqui”
Entre as muitas intervenções destacou-se a da hoje célebre artista Orlan, que decidiu vender beijos no Museu José Malhoa, a 2$50 cada. Por causa das grandes filas esta foi uma das intervenções que causou grande frisson entre a população. Houve vários momentos de estranheza entre os autores e a população. Também com o colectivo Puzzle houve uma intervenção polémica. Foi colocada numa casa na Praça da Fruta uma placa onde se informava que ali tinha nascido D. Sebastião, mas a população não gostou. “Sobretudo algumas senhoras que vinham da Zaira falavam e contestavam o feito”, lembrou Jaime Silva. Mas nem só de polémica viveu o evento que trouxe às Caldas Clara Menéres, Graça Morais, Nadir Afonso, Artur Bual, Albuquerque Mendes, Carlos Barroco, Serge Oldenbourg, Robert Filliou, Chantal Guyot e Fernando de Fillipo. Para Jaime Silva, a reacção da população “foi perfeitamente justificada”. O contexto artístico português nos anos 70 “era restrito aos coleccionadores” e portanto estava muito distante do quotidiano. Este artista, que posteriormente teve uma obra premiada na Bienal Internacional das Caldas da Rainha, considera que os vários encontros internacionais de arte tinham um carácter “liberalizante”, ou seja, os autores faziam as intervenções que queriam.
As várias edições incluíram também “discussões abertas ao público que foram muito participadas”, disse o artista, hoje dirigente da Sociedade Nacional de Belas Artes. Os encontros internacionais permitiram que a arte portuguesa “passasse a ser conhecida além fronteiras”, rematou.
Daniel Isidoro, filho de Jaime Isidoro, um dos organizadores dos Encontros, disse à Gazeta que era importante “aglutinar as informações sobre os encontros junto de participantes, organizadores e autores” de modo a organizar o que se sabe sobre este evento que aconteceu quando tinha apenas oito anos.
Cabral Pinto, director da Bienal Internacional de Arte de Cerveira, que está a preparar o quadragésimo aniversário daquela iniciativa – que é a bienal de arte mais antiga do país – recordou que esta é herdeira dos IV Encontros Internacionais de Arte das Caldas da Rainha. Daí ter organizado a tertúlia e a exposição que teve lugar na ESAD. Desta fizeram parte vários documentos como os diferentes comunicados dos partidos políticos sobre o acontecimento, assim como um texto inédito de Ernesto de Sousa que antecipava a criação de uma escola de artes nas Caldas, na sequência destes encontros. Presentes estiveram também vários suplementos das Gazeta das Caldas, que foram publicados na altura do evento.
Boatos causaram frisson
José Luís de Almeida Silva conversou sobre o facto da cidade ter acolhido refugiados durante a Segunda Guerra Mundial, logo “havia já grande abertura ao novo”. Grupos como o CCC também faziam performances e actividades culturais, dentro de portas.
O convidado explicou que conheceu bem o lado da contestação que vinha sobretudo de alguns comerciantes que contestavam o investimento. Estes achavam que os artistas “estavam a comer à conta deles e a gozar com a população”.
E a estranheza que as intervenções causavam eram consequência sobretudo de muitos boatos que surgiam. E explicou que a performance de Chantal Guynot que se “banhou” em mousse de chocolate para depois fazer desenhos com o próprio corpo em papel de cenário “foi vista apenas por 20 pessoas”. Mas ao contrário do que aconteceu, que foi feito por apenas uma artista, dizia-se que tinham sido vários os autores, banhados em chocolate. A contestação vinha sobretudo daqueles que pensavam que estas intervenções, “davam má imagem à cidade”, disse o orador. José Luís Almeida Silva recordou que cada autor presente nos Encontros ofereceu uma obra às Caldas “mas afinal acabaram no Porto, porque a cidade e o museu recusaram recebê-las e nunca mais quiseram falar sobre o assunto”. O convidado considera que a população jovem das Caldas aderiu à iniciativa em que nunca se sabia o que ia acontecer. Durante os dez dias do evento, houve sempre imprevistos. Muitas dessas obras que foram levadas das Caldas, como algumas apresentadas na exposição, têm hoje um valor muito considerável e marcam a história cultural de Portugal.