Teatro da Rainha levou peça díptica composta por cenas vicentinas e texto de Henrique Fialho ao adro da Igreja de N.S. Pópulo, durante cinco dias
As noites de teatro no verão, num local emblemático da cidade, promovidas pelo Teatro da Rainha e que já se realizam há seis anos, estiveram de volta entre 19 e 23 de julho. Desta feita, foi o adro da Igreja de N. S. Pópulo que acolheu o díptico composto por cenas vicentinas, em “Prantos, Lamentos, Loas e Pregões”, e pela comédia com laivos de tragédia de Henrique Fialho, intitulada “S.N.S”.
E é São Martinho quem estabelece a ponte entre as duas partes, não fosse ele o protagonista de um dos primeiros autos vicentinos, representado à Rainha D. Leonor naquela mesma igreja, em 1504.
“A dimensão histórica faz com que este se imponha como um local privilegiado para fazer aqui um espetáculo que recordasse e que fizesse as pessoas reviverem o Gil Vicente, nomeadamente o Auto de S. Martinho, que é a última cena da primeira parte. Depois faz a ligação com a segunda, como se tivessem passado 500 anos pelo S. Martinho, e ele virou costas à civilização e à santidade e foi viver isolado para uma ilha”, explicou Henrique Fialho.
O espetáculo foi assistido por mais de mil pessoas ao longo dos cinco dias, tendo sido colocada uma plateia com 200 lugares que não chegou para todos, com alguns espectadores visionando a peça a partir do cimo das escadas.
Pelo palco, decorado com um políptico com pinturas de João Vieira para Gil Vicente, e de Mel Ramos, Andy Warhol, Roy Liechtenstein e Tom Wesselman, adaptadas por Margarida Araújo e José Carlos Faria, para S.N.S., desfilaram inúmeras personagens vicentinas fustigadas pela madrasta miséria.
O início da peça coincide com o da humanidade, Eva e Adão no Jardim do Éden, tentados pelo fruto proibido, por influência da serpente, segundo plano engendrado por uma trindade diabólica. O mundo, então, passa a padecer de uma maldição sobre a mulher, a que correspondem as dores do parto, sobre o homem infligindo-se o suor do trabalho. A cena está inserida no “Breve Sumário da História de Deus”, escrito em 1527, e que desenvolve a teoria teológica da queda. “Vedes aqui, Senhor Mundo, a nossa parteira da terra”, afirma Adão ao ver a morte aproximar-se, no final da cena.
Com efeito, o quadro seguinte retrata um cenário pautado pela miséria na velhice, conducente a uma morte solitária e de indigente, pertencendo ao “Pranto de Maria Parda”, possivelmente de 1522, ano de secas, fomes e privações, em que se morria nas ruas de Lisboa.
Até à segunda parte, foram ainda representadas cenas de “Romagem de Agravados” (1533), “Auto das Fadas” (1527?) e “Quem tem farelos?” (1515), que evidenciam um tom protestativo. Presente está ainda a temática da caridade cristã que pretende combater a pobreza, como demonstra S. Martinho quando reparte a sua capa pelos pobres, um gesto simbólico do conteúdo da função hospitalar instituída nas Caldas da Rainha.
A temática é retomada, de forma contrastante, na segunda parte, que estabelece ainda nexos intertextuais com o Livro do Compromisso da Rainha (1512), documento que possui as normas orientadoras do funcionamento do Hospital Termal. Trata-se de uma adaptação aos tempos atuais, marcados pela pandemia e pelo “individualismo”, o “consumismo apoteótico de massas indiferentes ao outro” e as “‘casas eletrónicas’ de que parte substancial da humanidade se faz reclusa”, afirma o autor. Henrique Fialho pretendeu ainda fazer uma reflexão sobre o “conceito de generosidade à luz de uma misantropia contemporânea”, neste desafio que lhe foi lançado pelo encenador, Fernando Mora Ramos, em março de 2021.
A sátira social, em que estão representados um Martinho isolado do mundo, duas jovens típicas dos dias de hoje, que vão parar àquela ilha, que pensavam estar deserta, para poderem viver juntas em tempos de isolamento social, um negacionista e ainda Caronte, um barqueiro de uma startup de distribuição que debita notícias de um mundo em convulsão, possui um final “que tende para o trágico”.
“Os Míseros”, encenada por Fernando Mora Ramos, foi representada por Beatriz Antunes, Mafalda Taveira, Fábio Costa, João Costa, Nuno Machado, Vítor M Sousa e Diogo Marques. Com cenografia de José Carlos Faria e Fernando Mora Ramos, figurinos do Espólio do Teatro da Rainha, iluminação a cargo de António Anunciação e som de Francisco Leal. ■