Crónicas de Bem Fazer e de Mal Dizer – LXIII

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UMA VISITA AO CHALET DE BORDALO

 

Nos seus “Gatos” por várias vezes Fialho de Almeida faz referências a Bordalo Pinheiro e à sua Fábrica de Faianças. É da sua autoria um muito importante artigo em que chama a atenção dos leitores para as dificuldades que a Fábrica está a atravessar – artigo datado de 1892 – e a impossibilidade sentida por Bordalo para lhes fazer frente. Como é habitual reações oficiais houve, mas práticas para alterar tal situação, nenhumas…

Mas o artigo que hoje nos chama a atenção é um em que Fialho de Almeida descreve o chamado chalet de cortiça, onde Rafael reside quando por cá está.

Fialho de Almeida e Rafael Bordalo dirigiram-se para o Parque das Faianças, após terem jantado num hotel. Acompanhemos então os passeantes:

“Para chegar do hotel às instalações da fábrica de faiança, seguimos por um caminho silencioso, com um ou outro lampião mortiço, de petróleo depois, lá adiante adensava-se a treva, árvores desconfortes às duas bandas das barreiras, abobadando-se o alto num túnel de que não podíamos medir a profundeza… sossego, espanto… até que de repente um latido de rafeiro nos fez deter junto a uma cancela rústica, que era a entrada do parque da fábrica, todo em sombra, sonolência, e quietação. Numa clareira perto, alguns passos além, uma sombra de casa rústica com seu quadrado de estore iluminado. Bordalo chamou o guarda a que amainasse o cão, veio uma lanterna, e trepando pela escadinhola exterior do chalet, feita de toros de cortiça com vasos de begónias e trepadeira, achámo-nos numa espécie de cabana suspensa, concebida numa original e campestre fantasia. Teto e paredes era tudo forrado de esteiras de tábua, das que o a gente pobre aproveita para dormir de Verão. A meio da peça havia, desde a porta de entrada, um biombo de papel aguarelado de rãs e plantas d´água resguardando para a direita um canto d’alcova, com o mosqueiro de cassa de Malaca, tapetes caseiros e grupos de fotografias queridas em troféu, e delimitando para a esquerda o resto do espaço, que era ao mesmo tempo sala, gabinete de trabalho, casa de jantar e tolilete. Todas as umbreiras e cimos de janelas e portas, feitos d’entrançados de canastra, uma das engenhosas indústrias campestres da região, hoje perdida. Móveis de pinho, sem tinta nem verniz, respeitando as formas tradicionais de escabelo e do tamborete de tripeça, com pinturas representando flores e animais, no pinho cru; à altura da cimalha, prateleiras com faianças portugueses de Darque, Coimbra, Caldas e Lisboa; vasos com flores no lavatório e banca de trabalho, livros dispersos, e por cortinados e estores, pedaços d’algodoaria portuguesa e oriental, cheios de desenhinhos, vermelhos verdes e doirados, duma época em que a estamparia e a arte balbuciavam, com a graça das suas policromias hirtas e voantes.

Era naquele tugúrio a residência de Bordalo, improvisada com nove libras e um pouco d’imaginação arqui-estouvada, ao mesmo tempo labrega e distinta, entre as árvores do parque esmorecidas de sede, e naquela noite d’agosto, sem hálito, abobadando os campos sonolentos.

As oficinas e a fábrica ficam a meio do parque, num alto que as terras fazem a cerca de uma centena de metros do caminho.”

Neste momento do passeio noturno, deixamos os nossos acompanhantes e regressamos a casa…