Abrigo

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Estamos vivos. Vistos do chão até parecemos direitos. Uma curvatura ligeira, talvez, dos ossos ou das horas perdidas. Há que reconhecer, a nossa melhor actuação foi com os holofotes apagados, já toda a gente havia recolhido os microfones. Mas tu leste o poema e disseste: estamos vivos. E eu toquei-te nos ombros e fizemos coisas, fazem-se coisas, é preciso fazer acontecer na curva do tempo. Ora vê estes olhos cegos, ora bebe os restos de vinho nos meus lábios. Estamos vivos, amigo. Uma dor estranha passa por nós a alta velocidade, crescemos enquanto os ossos dos filhos se esticam à altura dos nossos ombros. E um destes dias, acredita, também a dor há-de despistar-se na curva do tempo. O tempo não perdoa, mata animais, fantasmas, monumentos, cala coretos, viola abrigos. Mas nós estamos vivos, a música do silêncio ainda agora começou. Ia jurar que acabei de ouvir a minha dor no eco do mundo, insuportável apatia. As curvas do coreto não deixam mentir. Actuámos, fizemos qualquer coisa acontecer, qualquer coisa que sobreviverá ao interesse dos demais. Que importa o interesse dos demais? Afinal vivos, verticais, desabrigados.