O Paul de Tornada é uma reserva natural local que recebe por ano entre 3000 a 5000 visitantes. Um sítio perto das Caldas onde é possível estar em comunhão com a natureza e observar aves e outros animais. É um local que inspirou, por exemplo, Bordalo Pinheiro e que chegou a ser utilizado para produzir arroz. Mas na década de 80 do século passado estava inculto, abandonado e poluído, ao ponto de ser considerado um problema de saúde pública. Em 30 anos foi despoluído e tornado numa reserva natural. Agora podem ser criadas melhores condições de visitação.
O Paul de Tornada é hoje uma reserva natural com 46 hectares, dos quais 25 correspondem à área permanentemente alagada. Essa área de água é delimitada por duas valas: a da Palhagueira a Oeste e a do Guardo-Mato a Este, que são praticamente paralelas e se encontram a Norte com uma terceira, a Vala do Meio.
Mas aquilo que hoje se vê no Paul é bem diferente do que era há 30 anos. Em 1987 a Gazeta das Caldas alertava na primeira página que “estão a matar os nossos rios!” e descrevia que “o Paul de Tornada é hoje uma lixeira a descoberto, exalando um odor pestilento”, referindo noutra publicação do mesmo ano que “o Paul choca-nos”.
Neste último texto dizia-se o seguinte: “as águas do Paul que, apesar das dificuldades de escoamento, ainda chegam à foz, agravam ainda mais a agonia do pequeno rio, que desagua na concha de São Martinho do Porto”.
Na Gazeta esclarecia-se que “há 20 anos [n.d.r.: nos anos 60 do século passado] tudo era diferente” e que “nas margens do Paul chegou-se a cultivar vinha e a produzir arroz e era dali que se extraíam materiais para a produção de esteiros. Depois veio a industrialização, as pecuárias clandestinas e os esgotos de uma parte da cidade das Caldas e há mais de sete anos que o Paul tem vindo a ficar cada vez mais degradado”, ou seja, no início da década de 80.
O retrato era negro: “quando não chove a água escasseia e uma pasta espessa, semelhante ao alcatrão, e que é o resultado das descargas poluentes das fábricas ali existentes fica depositada na área. O resultado é a morte de grande parte da vida ali existente”.
INCULTO E ABANDONADO
Guiados por um estudo de Conceição Martins e Rosalina Gabriel, recuemos 30 anos até 1988, ano em que as então estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, retrataram num trabalho o que era o Paul da Tornada.
Há três décadas, em Junho de 1988, as estudantes realçavam que o Paul tinha sido sujeito à acção humana durante séculos e que “ainda em épocas recentes aí se cultivava o arroz”.
Ainda assim, em 1988, estava “inculto e votado ao abandono quase completo” e que “se encontram ainda inúmeros vestígios dessa intervenção humana, mas a fauna e a flora selvagens desenvolvem-se livremente”.
A dupla identificou 267 espécies vegetais e 86 de aves e alertou que “tal como nas outras zonas húmidas do país, a poluição das águas, motivada pelos afluentes mistos, urbanos e industriais, é uma das graves ameaças”.
Daí que considerassem que “qualquer iniciativa conducente à recuperação ecológica da zona terá de passar pelo desenvolvimento de medidas de despoluição das suas águas”.
É que os esgotos urbanos da zona Norte das Caldas da Rainha eram “conduzidos para as valas naturais sem qualquer tratamento prévio”, indo parar ao Paul e, posteriormente, à baía de São Martinho.
Depois, vinha a poluição das principais indústrias que existiam na recta de Tornada, à época com seis grandes empresas a laborar.
Um cenário complicado que foi retratado nas páginas do estudo, onde se lê que “a poluição das águas do Paul é evidente, as valas laterais apresentam uma água negra, degradada e cheia de substâncias em suspensão”.
O estudo referia ainda “teores muito elevados de bactérias entéricas, indicadoras de contaminação fecal” e “o deplorável estado da qualidade das águas do Paul de Tornada, que conduz ao desequilíbrio biológico do sistema e representa um perigo em termos de saúde pública”.
Três décadas depois, percebe-se que o documento foi um guia para os caminhos que foram percorridos. É que já na altura as duas estudantes diziam que “a sua importância actual não reside nas potencialidades agrícolas, mas nas suas potencialidades ecológicas como zona húmida”.
No estudo lê-se que “drenar aqueles terrenos não seria viável devido à exiguidade do espaço. Como zona húmida, uma vez controlada a poluição que a asfixia, pode ser uma área de grande interesse”.
Dessa forma, “Considera-se que é necessário constituir com urgência uma reserva na zona, com uma área de protecção envolvente”, anotaram no documento, que suporta a ideia com o facto de o Paul ter uma grande biodiversidade e de representar um dos últimos exemplos das áreas empaludadas deixadas pelo recuo do mar.
As duas jovens apontavam “como medida prioritária o desenvolvimento de um projecto global de tratamento dessas águas residuais”. As valas exteriores “deveriam ser limpas, em toda a extensão do Paul, regularmente” e “a construção de observatórios, a elaboração de um percurso interpretativo e a recuperação de habitações existentes para local de recepção seriam os primeiros passos a desenvolver no sentido de criar as infraestruturas necessárias”.
A ORIGEM DO NOME “TORNADA”
Mas o ano de trabalho de campo permitiu-lhes traçar também a história do local e que contém algumas curiosidades. Uma delas é a desmistificação da lenda que diz que Tornada tem esse nome porque foi o local em que a rainha D. Leonor decidiu “tornar” às Caldas, depois de passar pelos mendigos que se banhavam nas águas termais.
“Trata-se de uma lenda romântica, mas bem longe da realidade”, esclarecem no documento que produziram. É que Tornada chamava-se Cornaga (que significa em latim braço de água ou corno de água). Por exemplo, no Livro da Receita e Despesa do Hospital Termal, é referido que “o Paul chamado da Cornaga e agora da Tornada que em tempo da rainha e dos nossos primeiros provedores se cultivava por conta do hospital com boys de caza e abegão e negros; e rendia naqulles annos mais de quinhentos alqueires de trigo e quarenta alqueires de segunda e legumes e toda a palha para os boys e cavalgaduras”.
ABRIU AS VALAS MAS NÃO PAGOU A RENDA
Também chamado de Paul da Bõa Vista do Estremo, foi dado, em 1479, pela Rainha D. Leonor a Pedro d’Alcaçova, como remuneração pelos seus serviços, que o devolveu à rainha, em 1509, para esta obter fundos para o hospital. Em 1518 rendeu quinhentos alqueires de trigo e vinte de cevada. Mas seis anos mais tarde foi arrendado. E foi sucessivamente arrendado até que, em 1586 Gonçalo Rois Caldeira gastou uma fortuna para abrir as valas. Só que não pagou a renda e acabou por partir para a Índia, endividado, deixando o Paul inculto.
Em 1613 volta a ser semeado por conta do hospital, que o torna a arrendar, durante mais de duas décadas.
Mais recentemente, até meados do século XX, cultivava-se nesta propriedade arroz e, nos terrenos marginais, havia vinhas. Onde hoje está o Centro Ecológico e Educativo, fazia-se a moagem de cereais vindos do Alentejo.
Além disso, o buinho (variedade de bambu) que ali aparecia era utilizado para fabricar esteiras para o chão e para as camas dos pobres, para cobrir as tinas das uvas e os montes de cereais.
O terreno, a quatro quilómetros das Caldas, pertence a dois proprietários privados, sendo que grande parte da área – incluindo toda a zona permanentemente alagada e o local de confluência das três valas – pertence ao mesmo proprietário.
O CENTRO ECOLÓGICO
Em 1988 é criada a PATO – Associação de Defesa do Paul de Tornada que assumiu o arrendamento do terreno junto dos proprietários – a família Polónia – num projecto-piloto em que uma associação de defesa do ambiente passava a ser gestora de uma área de interesse natural.
Depois de uma candidatura a fundos comunitários, é inaugurado no ano 2000 o Centro Ecológico e Educativo do Paul de Tornada, numa parceria entre o GEOTA e a PATO.
Logo no ano seguinte o Paul é classificado como sítio RAMSAR (zonas húmidas com interesse internacional para as aves aquáticas). Mas um dos maiores passos deu-se em 2009, com a classificação como Reserva Natural Local e a criação da Comissão Directiva, que é sempre presidida pela Câmara e que, além da autarquia, é composta pela GEOTA, PATO e Instituto de Conservação da Natureza e Floresta (ICNF).
“Um espaço com melgas e que cheirava mal”

Trinta anos depois do estudo, encontramos Conceição Martins, com a família, nos observatórios do Paul. Perguntamos pelas diferenças e a resposta é clara: “deixou de ser visto como um espaço com melgas e que cheirava mal para ser visto como um espaço que tem uma grande variedade de espécies de animais e de vegetais”.
A investigadora nota que houve uma evolução muito grande, salientando a classificação como sítio RAMSAR (2001) e como Reserva Natural Local (2009).
Conceição Martins notou que, além das infraestruturas construídas, os problemas na água foram em grande parte controlados, quer pelas estruturas de saneamento, quer pela deslocalização de empresas que tinham os seus esgotos para o Paul. “Houve essa evolução, mais ou menos, natural”.
A caça furtiva também era uma preocupação nessa altura e “acho que evoluiu favoravelmente, apesar de sabermos que não foi totalmente eliminada”, havendo episódios, por exemplo, como a apanha de meixão no Rio de Tornada.
“As condições de visitação são sempre precárias, precisam sempre de manutenção, recuperação e alguma ampliação que se pode fazer. O Centro precisa de algum investimento para se ir mantendo acolhedor para os visitantes”, disse à Gazeta das Caldas.
A investigadora acrescentou que os observatórios e os passadiços podem ser ampliados para ter melhor capacidade de visitação sem perturbar o ecossistema. “Há algum espaço edificado que está em ruínas e que poderia ser aproveitado para acolhimento de visitas de estudo e grupos e para outras actividades”, referiu.
Depois existe a questão da propriedade. É que sendo este um espaço privado, as associações continuam a pagar uma renda pelo seu uso. “Podia ser um espaço público, merecia a aquisição”, disse Conceição Martins, acrescentando que “temos tido sempre a boa colaboração dos proprietários, mas a evolução natural acho que passa por adquirir”, tornando-o um espaço público, mas mantendo as associações na gestão.
O agora presidente da Câmara, Tinta Ferreira, foi o primeiro presidente do Conselho Directivo da Reserva Local. Era na altura vereador.
Questionado pela Gazeta das Caldas, o autarca admite a aquisição dos terrenos. “Nunca houve essa negociação”, explicou, referindo que “se fosse um preço adequado, admitiria ponderarmos isso, com certeza”.
Tinta Ferreira fez notar que antigamente “havia apoios bastante significativos das estruturas do ambiente do Estado”, que permitiram a construção do centro educativo e a contratação de pessoas para dinamizar o local.
Com o passar do tempo, “o Estado foi-se demitindo aos poucos do investimento na área ambiental” e a colaboração municipal foi aumentando.
Actualmente, os recursos de funcionamento do centro educativo, assentam em actividades que desenvolvem e em subsídios da Câmara, quer ao GEOTA, quer à PATO, embora ao GEOTA acabe por ser o subsídio para pagar a renda.
Enquanto presidente da comissão, Tinta Ferreira visitou o Paul de Ponte de Lima e concluiu que o de Tornada “tem de criar algumas condições de autossustentabilidade sem prejudicar o ecossistema”.
O autarca salientou que não estão em causa os apoios municipais e não quer com isto dizer que o Paul consiga criar condições para uma sustentabilidade total. “Neste momento as receitas são na sua maioria municipais e só permitem a gestão e funcionamento que se conhece, com mais receita conseguiria uma dinâmica muito maior”, afirmou o presidente da Câmara.
Recordando o processo moroso de classificação enquanto reserva natural, Tinta Ferreira explicou que foram as associações que convenceram a Câmara de que era importante dar esse passo.
A Comissão Directiva desenvolveu um plano de gestão que foi parcialmente executado: “conseguiu-se definir algum tipo de intervenções necessárias e apresentar candidaturas que permitiram limpeza de espaços e das águas, a construção dos passadiços, entre outros” e que deram “outra oportunidade de visitação ao Paul”.
No plano de gestão estavam e estão previstas outras iniciativas, “mas ainda não houve condições e meios para as concretizar, nomeadamente a tentativa de desenvolver a produção de plantas lagunares e aromáticas, para ser uma fonte de receita”.
O aumento do número de visitantes e a criação de um alojamento no centro também foram previstos. “Ficou no ar a possibilidade de ser estabelecida uma parceria com uma unidade hoteleira ou um pequeno restaurante, nada invasivo”, garantiu o presidente da Câmara.
Em paralelo a autarquia tem “procurado no âmbito dos SMAS garantir a qualidade da água”.
