Uma exposição com elevado teor alcoólico no Museu do Vinho de Alcobaça

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A exposição foi inaugurada na passada sexta-feira, dia 22 de Julho | Beatriz Raposo

“Moderadamente bebido, o vinho é medicamento que rejuvenesce os velhos, cura os enfermos e enriquece os pobres”. Já o dizia Platão.“O Espírito do Vinho e os Humores” é como se designa a mais recente exposição patente na Adega dos Balseiros (Museu do Vinho de Alcobaça), que reúne cerca de 80 caricaturas publicadas na imprensa do século XIX até à actualidade. O vinho surge aqui retratado através do traço humorístico, associado às alegrias e desgraças do povo, como forma de crítica política e até para descrever a realidade do sector vinícola. Bordallo Pinheiro é um dos principais autores presentes nesta exposição, que pode ser visitada até 27 de Agosto.

 

“Moderadamente bebido, o vinho é medicamento que rejuvenesce os velhos, cura os enfermos e enriquece os pobres”. Já o dizia Platão. Na opinião de Alberto Guerreiro, museólogo no Museu do Vinho, “se existe alguma matéria capaz de exaltar o espírito humano, essa matéria é o vinho”, daí que faça “todo o sentido” acolher uma exposição em que se alia o vinho ao humor.
Isto não fosse o “néctar dos Deuses” responsável por, na maioria das vezes, alegrar o nosso estado de espírito, embora também haja casos em que em excesso seja culpado pelas desgraças do homem. As caricaturas expostas na Adega dos Balseiros são um espelho destas duas realidades – o lado bom e o lado mau do vinho – mas também um exemplo de como o vinho aliado ao desenho pode funcionar como arma para criticar a política e a sociedade.
Encontra-se a primeira referência ao vinho mesmo antes do nascimento da caricatura de imprensa portuguesa, em 1847. Desde o princípio do século XIX que a gravura surge inserida nos jornais (em “folhas volantes”) e nesta exposição há um original de 1832 que retrata o avanço dos Liberais para sul do Douro, onde se vêem os militares a deliciarem-se com os vinhos das Caves de Gaia.
Mais do que o tom político, nos primeiros tempos as gravuras assumiam um estilo realista, retratando os costumes e comportamentos da sociedade. Por isso mesmo, surgem vários tipos populares, como o taberneiro, o bebedor e o embriagado, destacando-se os trabalhos de Nogueira da Silva e Manuel Macedo.

BORDALLO E O VINHO

A partir de 1870, Rafael Bordallo Pinheiro assume um papel de relevo na caricatura naturalista e é através do seu traço humorístico que crítica os políticos da época, mas não só. “Se a política dominará a sua obra, o seu olhar não deixará de estar atento a todas as outras vicissitudes da sociedade, como crítico teatral e lírico, ironista social, repórter das dificuldades de sobrevivência do povo”, refere Osvaldo Macedo de Sousa, comissário desta exposição que reúne mais de 10 trabalhos com a assinatura de Bordallo.
O vinho surge nas suas caricaturas como suborno dos políticos ao povo em véspera de eleições – “Cá está a tasca do presidente. Bom vinho e petiscos” – mas também é motivo para evidenciar a pobreza em que viviam os camponeses que trabalhavam nas vinhas. Bordallo Pinheiro pega ainda na Phylloxera (uma praga que devastou mundialmente culturas de vinhedos e provocou uma crise no sector no século XIX) para comparar o parasita causador da doença ao banqueiro Burnay, conhecido na altura por cobrar altíssimos juros aos empréstimos que financiava.
“O vinho vive na obra de Bordallo em alegorias politicas, como uma das armas para aliciar o povo, mas também como desgraça desse mesmo Zé Povinho que perde a cabeça com as promessas, acabando por a sua momentânea alegria não ser mais que o antecedente da eterna ressaca”, acrescenta o historiador Osvaldo Macedo de Sousa, que é também colecionador e produtor cultural na área do cartoon.
Além de Bordallo Pinheiro, outras referências do cartoon assinam os desenhos desta exposição. É o caso de Jorge Colaço, Jorge Barradas, Almada Negreiros, Stuart Carvalhais, Carlos Laranjeira, Xaquin Marin e Zé Oliveira, que viram as suas obras publicadas em jornais e revistas como “O Século”, “O Primeiro de Janeiro”, “Os Ridículos”, “A Paródia” ou o “Diário do Alentejo”.

BEBIA-SE VINHO PARA ‘ESQUECER’ A DITADURA

A falta de abastecimento de água em Lisboa nos anos 20 (que implicou o aumento do preço do vinho), o tratado de comércio com a Inglaterra e, a partir de 1933, uma ditadura cuja censura limitou a criatividade dos artistas, são realidades às quais o vinho se associa na caricatura. “Esquecer foi a preocupação de muito português, durante o Estado Novo, fosse por cegueira, comodismo ou impotência, transformando-se esse néctar do esquecimento, veículo de fuga à realidade”, explica Osvaldo Macedo de Sousa, acrescentando que durante a censura “o vinho foi um substituto temático, na impossibilidade de satirizar o poder e a política”.
Hoje, a temática do vinho continua a estar presente no traço humorístico: este serve para alertar para o perigo do consumo de álcool na circulação rodoviária, para evidenciar os benefícios que um copo de vinho traz à saúde, ou para falar da moda do enoturismo. Serve também para trazer à tona os problemas relacionados com o alcoolismo ou, por outro lado, os efeitos positivos que uma garrafa de vinho pode ter numa mesa rodeada de amigos.
“O Espírito dos Vinhos e os Humores” inclui a edição de um catálogo que compila o trabalho de 55 autores e quase 100 caricaturas, datadas de 1832 até 2016. As mais recentes foram criadas de propósito para a exposição e há também desenhos que estiveram expostos de 1999 a 2013 no salão Luso-Galaico de Caricatura (Vila Real), alguns deles premiados. Encontra-se ainda um cartoon de Oliveira Lopes que é histórico para o Museu do Vinho de Alcobaça pois em 1962, no 25º aniversário da Junta Nacional do Vinho, anunciava-se a possibilidade de vir a ser criado um museu do vinho. Este viria a abrir portas em Alcobaça, 20 anos depois.

 

Requalificação no Museu do Vinho já começou

Iniciou-se na semana passada a primeira fase de requalificação do Museu do Vinho de Alcobaça, que inclui obras no edifício administrativo deste espaço museológico. Esta intervenção tem um custo de 12 mil euros e é financiada pelo município, que pretende mais tarde integrar esta despesa numa candidatura a fundos comunitários que abranja também a requalificação dos restantes espaços do museu. Uma loja e um restaurante são valências que fazem parte da segunda fase do projecto, que pretende requalificar o museu mantendo a sua fachada tradicional.
Só o ano passado o Museu do Vinho de Alcobaça foi visitado por 8.000 pessoas e desde 2013 (ano da sua reabertura ao público) tem aumentado sempre o seu número de visitantes. M.B.R.