Do que se segue, algumas memórias são de todos, outras de alguns e outras ainda só da cronista, num tempo tão distante que até a ficção parece mais verdadeira.
Rua Moinho de Vento, 23. Fogueiras de Santo António. Passeios de bicicleta com o pai ao fim do dia. Andorinhas em voo rasante. Aerograma. Matinés no Pinheiro Chagas. O Jorge e a Lena. O senhor Simões que comia amêndoas todo o ano. O 15 de Agosto e os trapezistas. Simplesmente, Maria. Laranjada e gasosa. A insolente cadência dos saltos altos da menina Milú sobre o pavimento da rua. Respeitinho é muito bonito. O quintal do Chucha e as latas de lavadura. Saco de leite no poial da porta; saco do pão pendurado no batente. Pistolas de fulminantes. Cheiro a torrefação de café. Sapatos engraxados e flor na botoeira. Amália. Angola e outras províncias. Jornal o Século todos os dias e crónica feminina às quintas-feiras. A D. Augusta à janela a gritar com os rapazes. 22966. Ultramar. Bata branca. Arroz-dos-telhados e pequenos insectos. O olhar bondoso do Senhor Faria da farmácia a falar connosco como se fôssemos gente grande. A sirene dos Bombeiros e o toque para almoço. A Elias à janela a gritar com os rapazes. As juntas de bois na Sebastião de Lima. A taberna do Chico da Júlia. Pessegueiros e nespereiras no quintal de trás. Praça do Peixe. O inconfundível cheiro das entretelas das oficinas de alfaiate. A Zaira e o Central. Pastilhas Pirata. Os intermináveis minutos da ida ao dispensário. Tarrafal e Peniche. A Anita vai às compras e os Falcões do meu irmão. Presépio com musgo (e sem árvore de Natal). Presentes no sapatinho. Segredinhos e língua de fora. Não se aponta que é feio. Cinco tostões para o ofertório. As manhãs de Sábado no Museu Malhoa. A campainha da D. Júlia e fuga pela rua acima. O cheiro a carapaus assados. Os ganapos a atazanarem o António Maria. O assobio estridente do amola-tesouras. Almoço de Domingo: todos vivos à volta da mesa com pato assado e arroz de forno. Pela Ladeira do Charuto, até à Rainha e ao Parque. A Escola Comercial. O Citroen Dyane e as criadas do senhor Mineiro. A Emissora Nacional e os concertos da Filarmónica de Berlim. A América. Cocheiras e latoeiros. O Manel e a Ivone. A Banda do Chico, antes do prémio Camões. Exame da quarta classe. Avental e lenço. A mercearia do senhor Arroja. Os jogos na Mata e a volta a Portugal vista da Praça. A morte do ‘Pavão’. Os bailes da Columbófila. A Volta dos Sinos. O levantamento da Infantaria 5. Excrementos de burro sobre o alcatrão da rua. Carrinhos de rolamentos. Caligrafia a tinta permanente. Amigados e desmanchos. Missa ao Domingo e soquetes brancos; mantilha preta para as senhoras, véu branco para as meninas. O Marcelo era outro. A lua era nossa. Mini-saia, como lá fora.
Revolução.
Conceição Henriques
Couto.henriques@gmail.com