Manuel Martins
historiador
Há cinquenta anos, o regime do sucessor de Salazar agonizava com os seus últimos suspiros. Como o corpo de um paciente em fase terminal avançada, esforçava-se por manter uma espécie de homeostasia com todas as suas forças, não tendo noção que os órgãos vitais que a sustinham já tinham entrado em falência ou disso se aproximavam. Postas de parte as analogias bio-fisiológicas: os pilares do regime que se tinha institucionalizado em 1933 estavam prestes a ruir, com variáveis graus de inteligibilidade desse processo presentes na mente dos seus coevos.
Nos cinquenta anos da queda desse regime, celebramos também, um pouco antes, um dos marcos identitários de Caldas da Rainha – o Levantamento, a Intentona, a “saída em falso”. Num evento que continua tão ambíguo e polissémico, não deixa de ser adequada a quantidade de expressões que se podem utilizar para se referir a ele. Este ensaio acaba por ser, simultaneamente, um contributo, uma homenagem e um apelo. Na dupla figura de historiador e cidadão, estou certo de que me permitem esse luxo: um contributo, no fundo, pela natureza de condensar e disponibilizar informação que torne o conhecimento mais acessível; uma homenagem, porque, enquanto cidadão, não posso deixar de a prestar a todos aqueles que contribuíram para que possa produzir este ensaio; e um apelo, para realçar a importância da história local na compreensão do todo e para apelar à continuação do estudo do 16 de Março, estando ainda muito por saber.
O porquê deste ensaio
As traves-mestre do ensaio já foram identificadas: contributo, homenagem e apelo. Não se pretende fazer uma descrição e interpretação total deste evento – para isso, não posso deixar de recomendar a publicação resultante da dissertação de mestrado de Joana de Matos Tornada (Nas Vésperas da Democracia em Portugal: o golpe das Caldas de 16 de março de 1974. Coimbra: Almedina, 2009.), tendo sido uma peça fundamental na elaboração deste texto. É, a meu ver, a obra mais próxima que possuímos de uma história, no sentido literário da palavra, do 16 de Março, e o seu contributo para a manutenção e desenvolvimento da identidade e memória dos caldenses não deve ser descurado. No entanto, e por muito que um historiador da Época Contemporânea almeje, o trabalho nunca está concluído – há sempre inovações teóricas, descoberta de novas fontes, novas interpretações que possam contestar ou complementar a nossa visão e, em certa medida, também é isso que pretendo fazer à obra que referi.
O objetivo não é, portanto, a reinvenção da roda no que ao 16 de março diz respeito. É, sim, sintetizar as conclusões a que se chegaram sobre esse dia, sobre os seus antecedentes e sobre as suas consequências e apelar à continuação do seu estudo através da apresentação de uma nova tipologia de fonte – a do arquivo partidário e particular – e ressalvando que outras permanecem por descobrir e identificar. Refiro-me, neste caso, a um comunicado emitido pelo Conselho Diretivo do Partido Socialista, ainda de forma clandestina, referindo-se ao Levantamento das Caldas e à Guerra Colonial, cujo conteúdo se analisará adiante1. Resta-me referir a importância do acervo documental do Arquivo Histórico Militar, já bastante consultado e analisado, para uma compreensão mais direta dos acontecimentos deste dia.
O que o 16 de Março não foi
Por um lado, o 16 de março não foi uma operação com prévia coordenação e controlo que extravasasse o Quartel das Caldas da Rainha.
É necessário haver a noção de que o período final do Estado Novo foi um profícuo ambiente conspirativo por todas as alas oposicionistas e da situação – o Movimento dos Capitães, predecessor do Movimento das Forças Armadas que esteve no centro da Revolução de Abril e do Período Revolucionário em Curso (PREC), apresentou-se inicialmente como um grupo de “defesa corporativa”, isto é, com o objetivo de salvaguardar a carreira dos oficiais vindos da Academia Militar que, no seu entendimento, se encontrava ameaçada pelo cada vez maior protagonismo dos oficiais milicianos, necessários ao prosseguimento da Guerra que o regime teimava em manter. A verdade é que a natureza deste Movimento muito rapidamente ultrapassou os seus primórdios corporativos, começando a aglutinar os impulsos de descontentamento da instituição militar gerados por uma situação de guerra insurrecional/subversiva cuja solução militar se começava a encarar como impossível – um problema político teria de ter, necessariamente, uma solução política. Foi a solução política encontrada por António de Spínola que muito impulsionou este entendimento, levando-o, em conjunto com Costa Gomes, a ser encarado como o líder natural por muitos destes oficiais intermédios – factor de tensão, naturalmente, com os oficiais que entendiam que o Movimento não devia tornar-se dependente dessa chefia nem se comprometer com os seus destinos.
Essa faceta multifacetada e ambígua do Movimento dos Capitães, bem como da sua dependência das redes pessoais e contactos diretos, situação natural com a natureza conspirativa que lhe estava associada, teve reflexos diretos nesta antecâmara do fim do Estado Novo. Boatos, rumores e expectativas lançaram impulsos que levaram à saída da coluna do Regimento de Infanteria 5 (RI5) na madrugada do dia 16.
Por outro lado, é errado desconectá-lo de um contexto maior, esse sim que muito extravasava o Quartel das Caldas, acreditando que seria um “triste episódio militar, que a irreflexão e talvez a ingenuidade de alguns oficiais, lamentavelmente produziu há poucos dias nas Caldas.“, como afirmou Marcelo Caetano na sua última Conversa em Família. Foram os boatos lançados nas redes pessoais dos oficiais do Movimento dos Capitães que impeliram a que figuras como os Capitães de Infantaria Luís Faria e Virgílio Varela ou os Tenentes de Infantaria Victor Carvalho e Adelino Coelho a acompanharem o Major Casanova Ferreira e a coluna do RI5 em direção a Lisboa.
Se foi um golpe spinolista em defesa do General ou uma tentativa de apressar a chegada da democracia a Portugal que estava na cabeça da maioria é difícil de apurar – os testemunhos são contraditórios e inconsistentes, e a própria documentação produzida pelo regime, ao que até agora se apura, não chega a uma conclusão certa. Mas é um facto que foi numa série de boatos de uma potencial operação a envolver o Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), em Lamego, o Regimento de Artilheria Ligeira 5 (RAL5), de Penafiel, e o Regimento de Infantaria 14 (RI14), em Viseu, que o RI5 sai do seu quartel. O pensamento e as ações dos seus oficias não devem ser desconectados do contexto bastante específico em que se inseriam.
O que foi, efetivamente
Também é um facto que os rangers do CIOE, não obstante todos os boatos, não saem em Lamego. O mesmo pode ser escrito do RAL5 e do RI14. A coluna motorizada do RI5, apontada pelo regime como sendo constituída por um jeep e entre 5 a 7 veículos de outro tipo, inicia a sua marcha até Lisboa de forma isolada.
Disso é informado o Tenente Coronel Virgílio Guimarães, comandante do Regimento de Infantaria 7 (RI7), de Leiria, cuja unidade será central no debelar do Golpe das Caldas. A sequência das ações das forças que são mobilizadas pela Região Militar de Tomar (RMT) pode ser melhor entendida pela consulta da fita do tempo que se apresenta, mas importa reter que a rendição que é forçada pelo Regimento de Infantaria 7 e pelo Brigadeiro Serrano, em conjunto com unidades do Regimento de Infantaria 15, da Escola Prática de Cavalaria (EPC) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) e dos seus informadores, é uma rendição sem mortos. O regime apanha um susto, mas entra numa aura de tranquilidade e confiança que lhe poderá ter sido fatal no dia 25 de abril desse ano.
Importa reter também que a repressão do RI5 não foi um ato estritamente militar. Mobilizou não só forças armadas e militarizadas, mas também a colaboração de instituições como a Câmara Municipal, os CTT e a recolha de informação através de civis afetos à GNR, à PSP e à DGS. É sintomático disto que o percurso da coluna do RI5 possa ter sido acompanhado não através dos grupos militares encarregues de bater o terreno e a localizar, mas sim pelas informações que os colaboradores civis forneciam à GNR e que esta, por sua vez, transmitia ao comando do RI7. Os mecanismos de repressão ativa do Estado Novo, permeando toda a sociedade portuguesa, davam uma última prova de força.
O que fica por saber
No fundo, muito já foi apurado acerca dos acontecimentos do 16 de Março, principalmente sobre os seus protagonistas militares. No entanto, ainda resta por apurar grande parte dos testemunhos da população que presenciou o golpe – muitos provavelmente perdidos – e de outros protagonistas que não os que estavam inseridos nas Forças Armadas. Isto permitiria, por exemplo, identificar a rede de colaboradores local, densificando o conhecimento sobre a capacidade de penetração da PIDE/DGS nas comunidades e complexificando
De outro modo, a consulta dos periódicos e da documentação diplomática estrangeiros sobre o 16 de março, que ainda permanece, em larga escala, por fazer, permitiria avaliar de mais uma maneira o quão isolado estava o regime português nos seus últimos meses e, também, o quão recetivos estavam os países do Bloco Ocidental a um golpe de estado liderado pela instituição militar nesta fase do Estado Novo.
Por último, a concretização prática de um dos pilares deste ensaio: o apelo à continuação do seu estudo. Há, ainda, documentação da oposição política do regime por consultar, bem como figuras por entrevistar, para perceber o impacto mental que esta tentativa de golpe teve na oposição ao Estado Novo. Prova disso é o comunicado produzido pelo Conselho Diretivo do Partido Socialista já em Abril, “O PS e a Guerra Colonial”. Não deixa de ser interessante a inserção, pelos socialistas, do 16 de março no contexto da Guerra Colonial, que estes consideram “o calcanhar de Aquiles do regime fascista”. O consumo desmesurado de recursos que este conflito acarretava, bem como a incapacidade, por parte das Forças Armadas, de lhe forçarem uma solução em combate, desgastaram durante 13 anos o regime fundado em 1933 por Oliveira Salazar. Às Forças Armadas, restaria apenas o papel de “bode expiatório” caso esta política fosse prosseguida, antecipando o fim do Estado Novo e apelando à descolonização como fim último.
Assim concluo a redação deste trabalho que, de resto, pretendo que seja do agrado de alguns e tenha impacto noutros. Neste cinquentenário do Golpe das Caldas, desejo apenas que os caldenses o mantenham na sua memória, e que os praticantes da História não o percam de vista. ■
1-Este documento pode ser consultado através dos serviços do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, encontrando-se no fundo do Arquivo Tito de Morais. Agradeço a esta instituição e aos descendentes do fundador do Partido Socialista pela ajuda prestada na realização deste trabalho.
2-Baseado na cronometria dos eventos produzida pelos serviços da Região Militar de Tomar e pelo Comandante do RI7. Foram selecionados os pontos considerados mais relevantes.