1974!

0
492

No dia em que pensámos abordar o tema desta crónica, ouvimos o actual Primeiro-Ministro de Portugal declarar aos microfones da Televisão Pública da nação, na Assembleia da República, que para os descendentes do grande Viriato, residentes na extremidade ocidental da Ibéria, o ano de 2012, só se poderá comparar ao já distante ano de 1974. Este foi no entanto o ano de Abril, o ano de todas as esperanças, e, modestamente pensamos que, em termos de dificuldades não foi de forma nenhuma mais difícil do que os dois ou três anos que se lhe seguiram.
Foi efectivamente um ano complicado, em primeiro lugar para todos os portugueses que viviam, alguns há muitas gerações, nas ex-colónias, e depois, para todos os que estavam demasiadamente próximos do partido único até então no poder, e para os funcionários ou os sinistros informadores da DGS (antiga PIDE), a polícia política do regime, ou ainda mas em diferente escala, para alguns detentores do grande capital em Portugal na altura. No nosso caso pessoal, foi sobretudo a partir do regresso do serviço militar em Angola, ao chegarmos a Lisboa naquele mês de Outubro do ano de 1975, e de certa forma incluídos na imensa avalanche de ex-colonos que tudo deixavam para trás, enquanto íamos observando alguns dos nossos antigos colegas dos bancos de escola, que após alguns meses de exílio forçado nas velhas democracias europeias, estavam igualmente de regresso, com o firme intuito de participarem activamente na construção dum país novo, foi dizíamos, exactamente nessa altura, e por uma questão de honestidade devemos mencioná-lo também, por causa de uma maravilhosa história de amor que ainda hoje perdura, começámos a pensar em construir a nossa vida noutros horizontes. Não fosse no entanto a sábia decisão da nossa companheira, já na altura com quase uma dezena de anos vividos por terras de França, as mesmas terras de onde voltavam alguns daqueles antigos colegas, e teria sido algures nesse país que nos teríamos estabelecido. Assim, acabámos quase naturalmente por nos dirigir para um território na América do Norte, onde a bela língua de Molière também é usada pela maioria da população, e que fazia, e faz parte integrante dum dos mais respeitados países do planeta, o grande Canadá.
Depois de 1975, e devido à nossa actividade profissional, pudemos felizmente regressar regularmente a Portugal, e observarmos, sobretudo a partir da entrada do país no grande bloco da União Europeia, que felizmente a qualidade de vida do povo português em nada ficava atrás da do canadiano médio. Por vezes dir-se-ia mesmo que a onda consumista se manifestava de forma mais ultrajante em Portugal do que no nosso novo país. Quantos portugueses residentes no estrangeiro não ficaram em determinadas visitas a familiares e amigos, surpreendidos com o número de telemóveis existentes na casa de cada família, na mesma aldeia das suas origens e onde até há bem pouco tempo, nem televisão por cabo ou por satélite existia. Foi a época do grande desenvolvimento e do aumento do nível de vida dos portugueses. Obviamente, foi também a época do inicio duma nova imigração em Portugal, oriunda sobretudo dos antigos países da cortina de ferro, mas igualmente do período em que muitos dos antigos clientes da nossa pequena agência de viagens, vinham visitar-nos com a firme intenção de regressarem ao país de origem. Justificavam na altura a decisão com o facto de os filhos estarem a atingir a adolescência, idade a partir da qual começariam a pensar pelas suas próprias cabeças e não mais iriam seguir os pais na caminhada do regresso ao país dos mesmos, do clima ameno, das boas praias e dos inúmeros cafés, onde os trabalhadores locais tomavam regularmente, não só o pequeno-almoço da manhã como mais duas ou três bicas diárias e discutiam futebol noite adentro, com os amigos da sua geração. Casos houve também, em que os jovens partiam para formar família e começar a vida em Portugal, acabando por deixar os pais por cá.
Entretanto chegou a crise de 2008, a torneira do crédito fechou, não só para o país mas também para as pessoas (entendemos que os bancos portugueses não estão neste momento a cumprir a função para a qual foram criados, mas não é disso que queremos tratar aqui), e a maioria daquelas crianças que vimos partir há dez ou quinze anos, voltam agora jovens adultos, sozinhos ou em família com filhos ainda bebés, para um país que já não é o seu, e onde, no caso dos casais, normalmente apenas um membro do núcleo familiar tem alguma ligação com este país. Chegam munidos de antigas referências que os pais lhes deram, mas também com uma formação académica que se manifesta na maior parte das vezes inadequada às necessidades canadianas, ou sem o tipo de conhecimentos práticos que abriram as portas aos pais, nos idos anos de sessenta ou setenta do século XX, e que continuam ainda a ser altamente requisitados pelas autoridades canadianas.
De cada vez que lidamos com estes jovens, revemo-nos na sua situação a tentar começar qualquer coisa, e procuramos ter sempre as palavras certas para cada caso, não nos esquecendo no entanto de os lembrar invariavelmente de que um dos principais requisitos para a adaptação a novos hábitos e culturas é a força com que cada um de nós consegue esquecer um pouco, os rituais e pequenos luxos que deixámos num país onde nascemos, mas que afinal nos deixou partir e não pôde ou não quis ter a capacidade ou vontade para nos manter no interior das suas fronteiras. Porque passámos por tudo o que estes jovens estão hoje a passar, sentimo-nos plenamente à vontade para lhes falar da nossa própria experiência, que não foi mais fácil do que a deles, e a nossa conversa termina sempre com votos de coragem, honestidade e muito, muito trabalho.

J.L. Reboleira Alexandre
jose.alexandre@videotron.ca