Dóris Santos
historiadora de arte e museóloga
Um ano passa a correr (habituamo-nos a dizer). Melhor, andamos nós a correr, já que as horas e os dias mantêm o seu ritmo.
Um ano de crónicas na “Gazeta das Caldas”, uma dúzia de textos, exercício exigente mas pelo qual estou muito grata à Gazeta; é uma honra ter contribuído para a sua história quase centenária. Saúdo o colega João dos Santos que partilhou comigo esta página, assim como envio um reconhecimento especial à minha primeira leitora e crítica lá de casa.
Escrever é um ato solitário, obriga-nos à reclusão. E foi em confinamento, imposto pela pandemia, que iniciei esta escrita. Mas, simultaneamente, como qualquer meio de comunicação, a crónica tende à partilha, a pôr em comum.
Portanto, estas crónicas não foram mais do que uma intenção de conversar; um diálogo entre, deste lado, a autora (sem pretensões de jornalista ou escritora) e desse lado, um leitor, um amigo, um universo humano diverso e incógnito com quem espero, de alguma maneira, ter criado elos de identificação, perturbação ou contentamento.
Neste entretempo, inevitavelmente falámos de doença, da privação da liberdade, de refugiados, de guerra… O cenário mantém-se, agrava-se? O anormal é afinal o “novo normal”? Ou apenas temos a memória curta e um parco conhecimento da história nacional e mundial?
Ao peso destes grilhões, contrapusemos a ânsia pela liberdade e pela felicidade, de “saborear” o presente e a importância de organizarmos as nossas instituições com base na redefinição de valores. De como as tradições populares e as vivências comunitárias são mais do que festas, expressões de uma identidade coletiva que marca o compasso social, mas de igual forma o nosso bem-estar individual e sentido de pertença.
Os museus e as artes estiveram sempre presentes nestas reflexões. Não os concebo separados da vida. Espero ter conseguido partilhar convosco esta noção.
Sabem aquelas obras de arte contemporânea expostas num cubo branco, com a legenda “sem título”, sem data, técnica mista? Ou seja, uma legenda reflexo da nossa necessidade de catalogar a realidade, que tudo permite incluir, mas que nada nos revela. Assim é o futuro. Ultrapassemos o ímpeto da catalogação, de estabelecer rótulos e categorias.
Afinal, a primavera está novamente aí. Tal como as míticas fénixes renasciam das cinzas, a Páscoa segue-se à Quaresma, as andorinhas começam a chegar e as flores a brotar nos ramos secos, e nós iremos renascer. Mais importante, e à nossa escala, somos protagonistas dessa transformação.
Segundo Spengler, na “Decadência do Ocidente”, “o que distingue a cidade da aldeia não é a extensão, nem o tamanho, mas a presença de uma alma da cidade”, o “verdadeiro milagre acontece quando nasce a alma de uma cidade”. Que a cidade das Caldas da Rainha encontre a sua alma, com o envolvimento da comunidade, dos seus agentes e protagonistas, na sua diversidade.
Termino esta série de crónicas com uma pintura icónica de José Malhoa, “A Mata das Caldas”. No fundo de uma ala escura e densa de arvoredo, abre-se um pequeno triângulo azul e luminoso do céu. Foquemo-nos nesse triângulo. ■