Decorreram a 1 de Abril último, 80 anos sobre a data em que, a 1 de Abril de 1944, Joaquim Miguel Nobre Ferreira, meu Pai, iniciou a sua actividade como farmacêutico da farmácia de A dos Francos, a qual, meses antes, havia comprado ao farmacêutico de Caldas da Rainha João Maldonado Freitas. Após a aquisição, e já na titularidade de nosso Pai, a farmácia manteve, durante vários anos, a denominação que vinha de trás- Farmácia Freitas- até à licenciatura em Farmácia (actual licenciatura em Ciências Farmacêuticas), na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, de meu Irmão, Emanuel do Nascimento Ferreira, adquirindo a farmácia, a partir de então, a actual denominação de Farmácia Ferreira, a qual é presentemente continuada por minha sobrinha Ana Sofia do Nascimento Ferreira, licenciada em Ciências Farmacêuticas.
Concretizar, em curto artigo jornalístico, 80 anos de efemérides farmacêuticas, constitui um esforço de síntese, onde alguns dos factos relevantes agora contados procuram compensar tantos outros que, por exiguidade de espaço, terão inevitavelmente de ficar omitidos.
A Farmácia de A dos Francos, cuja existência remonta a anos anteriores a nosso Pai, até então situada noutro local da aldeia, encerra uma história de vida orgulhosamente rica de acontecimentos! Durante muitos anos, foi local de encontro dos “intelectuais” da terra (médico, farmacêutico, maestro da música, pároco, presidente da junta, regedor, turistas de Lisboa em veraneio pela aldeia…). Nela se esboçou até a criação de um jornal da aldeia- “O Campónio” seria o seu nome, caso tivesse vindo a público, mas a circunstância do nome proposto para diretor do periódico- Acácio Pronto, de A dos Francos, ser um opositor ao regime de então, levou ao veto por razões políticas dos serviços oficiais de Informação e Censura, tendo o projeto sido abandonado …
Simultaneamente com o seu objeto específico, de venda de medicamentos e atendimento público de doentes e restantes utentes dos respetivos serviços, no espaço físico da farmácia de A dos Francos ocorriam também eventos de natureza totalmente diversa, face ao espírito de dedicação e ajuda às causas públicas constantemente demonstrados por nosso Pai, em favor da população local. Assim acontecia, por exemplo, com a situação (tão pitoresca!) de ser na farmácia que, durante a festa anual da aldeia, os ciclistas se inscreviam e equipavam para correr as célebres “8 voltas ao Coqueiro”- corrida de bicicleta que integrou durante vários anos o programa das festas, e onde compareciam ciclistas de nomeada (entre eles, guardo da infância os nomes de Maximiano Rola, João Marcelino, José Calquinhas…). Entre as mesmas paredes da farmácia, e a pedido do respectivo Conservador do Registo Civil, desempenhou também meu Pai a função de ajudante do registo civil, aí lavrando assentos de registos de nascimento; foi também correspondente do “Diário de Notícias” (era na farmácia que eram depositados, para serem depois distribuídos por outra pessoa, os jornais de Lisboa, trazidos pela carreira diária de camionagem); foi, durante vários anos, colaborador da “Gazeta das Caldas”, onde assinava as conhecidas “Crónicas da Aldeia”.
Recordo a máquina de escrever que estava na secretária da farmácia, na qual, nos intervalos das receitas, meu Pai exercitava a sua tão rica e apreciada veia literária… Com essa máquina de escrever, o nosso Pai contactava e correspondia-se com diversas entidades públicas, ajudando as pessoas que pediam esse seu auxílio, face a qualquer problema com que se deparavam.
Enquanto membro da Junta de Freguesia de A dos Francos, cargo que lhe solicitaram que exercesse durante vários anos, era na farmácia que, por vezes, se reuniam, à noite, os membros da Junta, sendo também entre as paredes da farmácia que, solitariamente, meu Pai pensava e ordenava iniciativas, as mais diversas, para desenvolvimento e engrandecimento de A dos Francos. Com que saudade recordo a primeira vez que, na farmácia, me falou na ideia de se homenagearem as Senhoras Professoras primárias de A dos Francos, duas irmãs, vindas de Lisboa e que se radicaram na aldeia- Dª Custódia e Dª Eugénia Nogueira- que durante décadas, num exemplo único de total dedicação ao ensino, ensinaram com ímpar competência múltiplas gerações de raparigas e rapazes de A dos Francos!
Foi ainda na farmácia que pensou e “meteu mãos” em tantas obras que subsistem em A dos Francos (entre outras iniciativas, pugnou pela eletrificação da terra, pela construção do Centro de Dia, pelo alcatroamento da estrada, pela construção do paredão que sustentou a queda de terras junto ao coreto, no lugar de baixo A dos Francos, e no qual ainda se pode ler uma placa, por si escrita, alusiva ao acto).
Havendo ainda muito poucos telefones em A dos Francos, a farmácia disponibilizava publicamente o seu telefone (o conhecido número “2” de A dos Francos) para as pessoas poderem fazer e receber as suas chamadas.
Guardo ainda o tom altíssimo com que alguns locais falavam ao telefone, som que era como que directamente proporcional à distância para onde estavam a falar: imagine-se o sonoro duma chamada feita para ou vinda de Trás-os Montes! ….
Era eu criança, quando, no avanço da noite, abri a porta a um homem: perguntou-me por meu Pai; chamado este, deparou-se-lhe um homem que, quase sufocado, mal podia falar; tinha-se picado com um ferro ferrugento e apresentava evidentes sinais de um tétano galopante. Na madrugada, meu Pai desceu à farmácia e de pronto lhe aplicou uma injeção anti-tetânica, que lhe permitiu, passados uns instantes, distender o pescoço e começar a respirar, mas ordenando-lhe uma ida imediata ao hospital.
Vendo quem lhe salvara a vida… o cidadão quis mostrar o seu reconhecimento, aparecendo na farmácia com uma enorme galinha (depenada e cozinhada !) para oferecer ao seu salvador.
A concluir os episódios vividos na farmácia, relembro que meu Pai me contou que a um residente, com mais de 90 anos, apareceu-lhe uma escoriação escura no lábio. Como era um fumador compulsivo, meu Pai não teve dúvida de que isso seria um efeito tabagístico, recomendando-lhe que fosse ao médico. Tendo este confirmado essa suspeita, receitou-lhe a aplicação de mercurocromo no lábio. Entrando na farmácia com a singela receita, gabou-se a meu Pai ser “a primeira vez que entrava numa farmácia para comprar um remédio, mas mesmo assim… só para uso externo”.
Iniciou nosso Pai a sua vida farmacêutica no Sanatório Sousa Martins (actual Hospital Sousa Martins) da Guarda, destinado à cura de doentes com tuberculose, onde conheceu nossa Mãe, aí tendo nascido seus filhos.
Hoje, a vila de A dos Francos celebra os 80 anos da sua única farmácia; em 1 de Abril de 1974, seus filhos, irmãos e alguns membros da família Maldonado Freitas, celebraram os 30 anos. Chamado à farmácia, como se fora por causa de uma receita, meu Pai foi surpreendido com essa homenagem. Tal foi a sua comoção, que eu e meu Irmão, ao vermos perigar a sua saúde emocional, pensámos se a iniciativa teria sido boa ideia… ■
Luís do Nascimento Ferreira