Cristina Soares
Consultora de Comunicação de Ciência
Escrevo esta crónica no rescaldo das eleições legislativas de 10 de Março, cujos resultados eleitorais foram negros para uma democracia que completará 50 anos no próximo mês de Abril. Até ao momento, ainda faltam apurar os círculos fora de Portugal. Mas já se sabe que 18% dos portugueses consideram que votar num partido que lhes põe em causa os seus direitos e garantias, em particular os das mulheres, é um voto de protesto.
Mas nestas eleições houve um outro número que me saltou à vista: Mais de 100.000 portugueses votaram no partido ADN (Alternativa Democrática Nacional). Nas eleições de 2022, o ADN conseguiu apenas 10.911 votos. Podemos pensar que em dois anos, cerca de 90.000 portugueses tenham aderido ao discurso negacionista e lunático deste partido de extrema-direita. Mas tudo indica que as nove dezenas de votos que o ADN teve a mais, foram… engano!
Parece que muitos portugueses confundiram a sigla ADN com AD. Até porque nos boletins de votos dos 22 círculos eleitorais, não surge o “logotipo” da AD, mas sim, o nome por extenso – Aliança Democrática – e os símbolos dos partidos que constituem a AD.
90.000 portugueses debateram-se com a leitura de um boletim de voto. Um boletim de voto não é uma página de literatura, não é James Joyce, Tolstoi nem Saramago. É uma lista de nomes com siglas, bonecos e quadrados para pôr cruzes.
Ainda assim, o equivalente à população inteira de 8 concelhos de Óbidos ou à de quase 2 das Caldas da Rainha, não sabe que AD é uma aliança e não uma alternativa, não sabe que AD é um conjunto de três partidos.
Há anos que trabalho em comunicação, em particular em linguagem clara e comunicação de ciência. Há anos que alerto para um problema grave de iliteracia da população portuguesa e para o fosso que existe entre a linguagem usada pelas instituições (justiça, autoridade tributária, academia, etc.) e aquele grande maioria da população portuguesa que fica fora das nossas pequenas bolhas.
Num país onde, em 2020, mais de metade dos portugueses liam menos de um livro por ano, e onde em 2000, segundo um estudo da OCDE sobre a literacia, 3 em cada 4 não conseguiam descodificar uma carta das finanças ou uma bula de medicamento, o direito a entender deveria estar consagrado na constituição. O direito a entender para conseguir interpretar um boletim de voto, e assim exercer em consciência e em clareza, outro direito democrático fundamental.
Há anos que falo nisto e há anos que tenho como resposta a descrença e o “não é bem assim”.
Será?
18% dos portugueses acha que o voto num partido antidemocrático é um voto de protesto.
O “engano” no ADN custou 2 a 3 deputados à AD. Quanto mais terá de custar a iliteracia à nossa democracia? ■