Guilherme José
Livreiro “Malfeitor”
Ao longo de todos estes anos de estudo, seja de forma autodidata ou no tempo já dedicado ao serviço da academia, e ao abraçar fortemente as grandes questões filosóficas que ainda estão por responder – e que continuarão assim, presumo – apercebo-me de algo que o filósofo Ortega y Gasset já indicava há muito tempo: não abandonamos o intelecto porque acreditamos que ele ainda nos é muito útil e que, mais cedo ou mais tarde, nos servirá para algo mais do que apenas discussões, dialética e noites mal dormidas. Não é que eu tenha passado a adotar completamente esta perspetiva, mas tenho que admitir que o que realmente importa, no meu entender, não é conquistado por uma via exclusivamente intelectual.
É importante lermos a oposição de alguns místicos medievais, como al-Ghazali, quando este se opõe aos «mutakallimun», uma espécie de escolásticos islâmicos, e à «falsafa» (filosofia islâmica). Ele acusa-os de não estarem preparados para a «fanã», a completa dissolução em Deus, devido à falta de abandono da razão por parte deles próprios. Podemos encontrar casos idênticos em todas as correntes místicas, desde sufis a cristãos orientais, até hindus, que entraram em disputa com determinadas escolas filosóficas da época. O intelecto e a racionalidade são sobrestimados, e em última instância, aquele que busca realmente a Verdade terá que abrir mão desses entraves.
Todas estas expressões, desde o intelecto (que ganhou um cunho bastante restrito desde São Tomás de Aquino quando se opôs à ideia de “intelecto” presente no neoplatónico persa Avicena), até à inteligência e à razão, embora pareçam sinônimos, são coisas distintas o bastante em filosofia. Mas, remetendo-as numa sentença geral e para o entendimento de todos, digamos que são formas de conhecer os objetos e de aprofundar as nossas relações com a exterioridade. Tudo muito bem. No entanto, aquele que quer ir para além do âmbito da relação com as coisas – isso presume uma transcendência – deve assumir que nenhum destes métodos lhe será útil. Digamos que o processo dialético, a discussão filosófica, é uma verdadeira luta de galos na qual se forçam os contrários, e no final um vencerá. Face a isso, o envolvimento místico pressupõe precisamente que os contrários devem ser ambos anulados, “coincidentia oppositorum”; nesse patamar, todas as instâncias aparentemente divergentes se fundem e dão origem a uma só instância que renuncia a toda afirmação e negação. ■