Cristina Soares
Consultora de Comunicação de Ciência
Há uns dias, a propósito da música de Ryuchi Sakamoto e do meu fascínio pelo Japão, falou –se, numa mesa de amigos, da “Kintsugi”, a arte japonesa de reparar uma peça de cerâmica, na qual os cacos são reunidos com laca, ouro ou prata. Esta técnica, também ela uma filosofia de vida, celebra a imperfeição, lembrando que de certa forma, somos todos feitos de pequenos estilhaços e cicatrizes.
Há uns tempos, também, li um artigo que relatava a história de um professor que se apercebeu de que os alunos andavam a usar o ChatGPT para fazerem os trabalhos, por estranhar a ausência de gralhas e erros ortográficos. E fiquei a pensar que a Inteligência Artificial que anda aí a pairar sobre nós como um novo apocalipse, consegue superar-nos em tanta coisa, menos naquela que tanto nos esforçamos por esconder, mas que ao mesmo tempo nos torna humanos: o erro e a imperfeição. A falha.
Temos efectivamente muita dificuldade em admitir que errámos, que falhámos. Em admitir que nunca teremos um lugar no Olimpo, à esquerda ou à direita dos Deuses. Em Portugal, graças ao bafiento controlo social de adro de igreja, que não nos saiu do corpinho, nem mesmo com o 25 de Abril, então, ao erro, chamamos vergonha (o que é que os outros vão dizer e pensar…?) e carregamo-lo de olhos postos no chão. Ou varremo-lo para debaixo do tapete e nunca mais falamos. Talvez por isso Álvaro de Campos se tenha lamentado que “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo“. Talvez por isso sejamos tão avessos à gabarolice e à vaidade. Sabemos bem os pés de barro que temos debaixo do tapete, e os tapetes dos outros não hão-de ser como a galinha da vizinha.
Engraçado que não percebamos que aquilo que somos, essa centelha a que chamamos humanidade, mora também nessa falha “vergonhosa”. Mora nas quedas que demos (e nas que ainda daremos), nos tropeções, nas palavras erradas. O erro humano é tão perfeito, tão único (mas ao mesmo tempo tão confortavelmente igual) que nem a inteligência artificial (ainda) o consegue reproduzir.
O erro, ao contrário do que tememos, não é uma medusa que nos transformará em pedra se para ele olharmos de frente. Quando olhado de frente, como quem aprende, é capaz de nos transformar, sim, mas numa nova peça, com todos os pequenos cacos reunidos de forma mais ou menos diferente. E é essa pequena cicatriz de ouro ou prata, essa perfeita imperfeição, que nos torna únicos e faz esta passagem a que chamamos vida ter algum sentido. ■