Agustina Bessa-Luís, A Ronda da Noite

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Isabel Xavier
professora

Tudo começa num dia de finados, num cemitério. Nesse dia e lugar simbólicos, ficamos a conhecer Maria Rosa Nabasco e o seu neto, Martinho. São eles as personagens principais do livro de Agustina, A Ronda da Noite, se não contarmos com a própria obra de Rembrandt, a que o mesmo título alude, e de que eles eram proprietários.
Será a obra autêntica, ou não? Essa ambiguidade, ou incerteza, está presente ao longo de toda a narrativa. Há uma relação íntima, pouco a pouco construída, entre as figuras do quadro e as personagens do livro. E o que representa o quadro? “Não é o que aconteceu que lá está, mas um acontecimento em vias de se produzir”, segundo as palavras de Agustina.
As personagens, para além das individuais, são famílias, gerações inteiras, criadas da casa, gente inadaptada ao tempo de agora, aquele em que vive, porque em si carrega todo um tempo anterior. O tempo, ou melhor, o cruzar dos tempos, é outra personagem: a decadência de uma família laboriosamente construída. E o quadro como espectador, sempre presente, atravessando gerações, alegoria do destino, alegoria da própria vida. Excessivo, até pelas dimensões, é difícil adaptá-lo às paredes que lhe são reservadas, pela família Nabasco, no périplo que percorre pelas suas propriedades.
Martinho vai ficando cada vez mais obcecado pela tela, a ponto de as figuras nela representadas habitarem os seus sonhos ou de, na sua presença, ter dificuldade em desviar o olhar. “O quadro chega a ter, para Martinho, o sentido de um livro de adivinhas. Tinha que o ler e interpretar. Escondia, em grande parte, a sua fascinação pela Ronda, a ponto de falar em vendê-la para cobrir as dívidas da casa”.
Agustina dá das relações humanas outra perspetiva, como se reinventasse a nossa humanidade. O que diz nunca é banal, pelo que o que está em causa, ao ler este livro, é a fuga à banalidade, o encontro de um refúgio de valor inestimável num mundo em que a banalidade nos persegue constantemente. Até a descrição do mais simples gesto adquire, pelo milagre da palavra, um outro, indefinível, significado.
Ao longo da narrativa, novas personagens vão sendo introduzidas por frases fortuitas, aparentemente insignificantes, mas cujo entrelaçar desenha um significado portentoso. É o encontro da palavra e da imagem. É a capacidade rara, ou mesmo única, em Agustina, de criar uma atmosfera de que podemos participar, lendo-a. A surpresa pode encontrar-se na próxima frase, a volúpia de uma leitura imprevisível: afinal o que acontecerá à Ronda da Noite? Não o vou revelar, na esperança de assim contribuir para que, lendo-me, alguém vá ler o livro. Se houver uma pessoa que o faça, já será muito bom. É que se trata do convívio com o génio, algo que não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar. E sobre tudo isto, é uma escrita inteligente. E mais não digo.