ANNUS MIRABILIS – O público e o privado

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Uma das facetas da vida contemporânea que causa mais perplexidade, é a atitude de muitas pessoas face ao público e ao privado, ou, mais concretamente, à compreensão e distinção que fazem entre aquilo que é do domínio público, estatal, privado e social. Confunde-se, amiúde, serviço com propriedade, pensando-se que o serviço público só é (ou tem de ser) prestado por entidades pertencentes ao Estado, o que não é verdade.

Abundam os exemplos de bom serviço público prestado por entidades privadas ou do sector social (também conhecido por terceiro sector), muitas vezes melhor do que o prestado por repartições ou empresas públicas (ou seja, do Estado). Como se constata, a semântica da palavra “público” favorece esta confusão, mas há motivos ideológicos que a reforçam e interesses espúrios que a defendem, tendo-se criado um emaranhado de dependências do Estado que não é fácil de desembaraçar.
Por ignorância, genuína ou fingida, tenta-se fazer crer que o que vem do Estado é bom e o que tem o cunho privado é mau. Despudoradamente, exploram-se mitos e agitam-se espantalhos. Mas, então, não é cada um de nós “privado”? Não é o comércio, pequeno e grande, privado? Não são os alimentos que compramos e introduzimos no nosso corpo, privados e vitais? Não é a informação e opinião que consumimos e introduzimos na nossa mente, privada e essencial? Sejamos claros: antes do Estado aparecer, já cá nós andávamos há muito tempo. O Estado, que custa muito dinheiro e é por todos nós suportado com grande sacrifício, surgiu para tornar mais eficiente a vida em sociedade, regulando-a, dinamizando-a, equilibrando-a e representando-a. Por princípio e natureza, o Estado não existe para competir com formas de organização baseadas na iniciativa individual ou colectiva dos cidadãos, e muito menos para se substituir a elas.
Cada cidadão, cada família, cada comunidade, deve cuidar de si o melhor que puder e souber, com sentido de responsabilidade, visão, iniciativa e organização. Ao Estado, compete facilitar esta dinâmica, com isenção, justiça, transparência, qualidade e eficiência, numa óptica de serviço e de prestação de contas aos cidadãos. Não o contrário, isto é, deixar-se apropriar por grupos de interesses que dele pretendem servir-se, abusando do poder e fazendo crer que o Estado tem uma importância que realmente não tem. Nem deve ter, para não limitar o espaço que pertence, por direito e obrigação, ao cidadão. O mito do “Estado Social”, tratado mais como um artifício de linguagem ou figura de retórica do que como importante função social do Estado, contribui na prática para a desresponsabilização individual e colectiva dos cidadãos, que pouco cuidam de poupar e de investir na sua educação, saúde e reforma, desprezando o interesse associativo e mutualista. Precisamos de Estado, sim, sobretudo de bom Estado, mas precisamos muitíssimo mais daquilo que infelizmente nos tem faltado: Sociedade. Isto é, de uma comunidade de cidadãos livres, cultos, solidários, dinâmicos e conscientes.

 

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