Desde 07-11-2023, muito se falou, escreveu e comentou acerca da investigação
“influencer” que tem como objecto a suposta prática de ilícitos criminais por membros
do governo liderado pelo demissionário António Costa (AC), empresários e consultores
que orbitam em seu torno.
Uns, criticam AC; outros, criticam o Ministério Público (MP).
Criticam AC, por se ter rodeado de gente incompetente (ministro Galamba) e por
outros (chefe de gabinete, assessores e “lobistas”) que “minaram” o governo, a partir
do interior, corroendo os alicerces do estado de direito e da democracia. Por isso, dizse, não restava a AC outra alternativa que não fosse a apresentação da demissão,
(asseverando os mais radicais, da direita à esquerda, que a decisão pecou por tardia, e
que foi necessária a referida investigação vir a público).
Criticam o MP, por, alegadamente, extravasando as suas atribuições, estar a interferir
no “calendário político e governativo” (coincidência da actuação investigatória, agora
mais visível e exteriorizada – buscas/detenções/constituição de arguidos/promoção de
aplicação de medidas de coacção –, com o orçamento de estado em
discussão/aprovação; PPR em execução; suspeitas de “cunha” do Presidente da
República no tratamento milionário de duas crianças no Hospital de Santa Maria, etc.),
investido de uma espécie de “agenda política” particular, directa ou indirectamente
causal do queda do governo (ou, mais concretamente, de AC).
O mediatismo e o imediatismo dos acontecimentos divulgados sob as mais diversas
fontes noticiosas que alimentam a discussão de cada facção, conduz à perda de
racionalidade e de clareza, descentrando e deturpando, de um lado, o papel do MP, e
levando, de outro lado, à tomada de decisões precipitadas, emotivas, imprudentes e
de consequências graves/imprevisíveis. Vejamos:
De entre outras atribuições, compete ao MP exercer a acção penal orientada pelo
princípio da legalidade e sujeita a critérios de estrita objectividade, estando essa
autoridade judiciária obrigada à prossecução de todas as diligências investigatórias que
se imponham na sequência do conhecimento de factos susceptíveis de constituírem
crime, seja por conhecimento próprio, seja por intermédio das entidades policiais, seja
mediante denúncia. Confrontado com o referido conhecimento, o MP não pode, pura
e simplesmente, de modo arbitrário, discricionário ou por mera
conveniência/percepção/concepção/opinião individualista, “fechar os olhos” a tais
factos, ignorá-los, irrelevá-los e “despejar” a denúncia na gaveta. Como também não o
poderá fazer se – aberto inquérito, no cumprimento dessas atribuições, e prosseguidos
os exigidos actos de investigação –, através dos meios de obtenção de prova
produzidos (como é o caso das intercepções/escutas telefónicas) e/ou dos elementos
probatórios carreados (testemunhais, documentais, periciais), o MP prefigurar, na
avaliação dos mesmos (trate-se de 1 ou 200 escutas telefónicas; uma centena ou um
milhar de documentos), que o primeiro ministro pode ter algum tipo de envolvimento
em factualidade susceptível de consubstanciar ilícito criminal. E é precisamente aqui
que quase todas as análises têm falhado. Terá igualmente sido aqui que AC falhou
(apesar da sua formação jurídica, prática judiciária passada como advogado, ocupação
do cargo de Ministro da Justiça e de Ministro da Administração Interna).
Com efeito, a abertura e/ou a extensibilidade de investigação criminal objectivando o
primeiro ministro (ou qualquer outra pessoa), existindo os mencionados dados
probatórios que o referenciam, é uma garantia, um direito constitucional para
salvaguarda dele próprio, porquanto o inquérito criminal não tem como finalidade
única e exclusiva a dedução de acusação. Cabendo ao MP apurar tanto a verificação de
crime como a inexistência dele; podendo resultar da conclusão do inquérito a dedução
de acusação, ou o seu arquivamento (inclusive quanto àqueles que tenham sido,
durante o mesmo, constituídos arguidos e/ou considerados suspeitos). – Ou seja, em
rigor: só deverá haver lugar à dedução de acusação se, durante o inquérito e
terminado este, tiverem sido recolhidos indícios dos quais resulte uma possibilidade
razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força daqueles, em julgamento, uma
pena ou uma medida de segurança. Mas, diferentemente, do inquérito criminal
também poderá vir a resultar: i) a recolha de prova bastante de se não ter verificado
crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente
inadmissível a prossecução da acção penal; ii) ou, ainda, a impossibilidade de terem
sido obtidos indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes.
Por isto, se afirma, em termos simples, que o MP tem o dever legal/objectivo de
investigar para acusar como para arquivar – conceptualização que se aplica,
obviamente, ao primeiro ministro.
Neste quadro, que é aquele que, legal e constitucionalmente vigora em Portugal,
estando AC seguro – talqualmente comunicou ao país – de que não terá incorrido na
prática de qualquer crime, mesmo sendo probatoriamente suspeito, ou, porventura
até, constituído arguido, certamente que o inquérito eventualmente instaurado contra
si teria/terá sempre a virtualidade de comprovar exactamente isso: que não cometeu
qualquer crime.
Não nos deveremos, pois, surpreender se, na conclusão do inquérito que
eventualmente venha a ser instaurado contra AC, ocorrer o respectivo arquivamento.
Consequentemente, AC – irreconhecivelmente, e ao contrário daquela que foi sempre
a sua forma de actuação política –, foi (na corrente de muitos outros) imediatista,
precipitado e imprudente na decisão (a quente) de demissão.
Com arquivamento, ou com acusação, o MP está a cumprir as suas atribuições
constitucionais, processuais-penais e estatutárias. Jamais podendo ser
responsabilizado pela tomada dessa decisão; pela “queda” do governo.
Responsabilizado seria se não investigasse (repete-se: para acusar ou para arquivar).
É AC o grande responsável por ter desperdiçado a oportunidade da maioria absoluta
que o voto democrático lhe confiou, e que, com essa decisão – se já estava desgastado
– definitivamente renegou. O facto de ter nomeado Vítor Escária como seu chefe de
gabinete e Galamba como ministro, foi somente mais um pretexto para a “desistência
do país”, uma vez que as condutas destes, até agora conhecidas, por si só, não o
podem tornar responsável (mesmo politicamente) pelos seus devaneios individuais,
impondo-se antes, a bem do país, um sério processo de reflexão retrospectiva sobre se
os deveria ter nomeado – com resposta negativa, a determinar as suas substituições
com reestruturação/reformulação do governo (que deveria ter sido empreendida há
muito tempo atrás, especialmente no que respeita a Galamba).
Luís Costa