Há dias fizeram-me chegar a imagem chocante de uma mãe a dormir com o filho na rua, imagem iluminada por legenda aparentemente esclarecedora: “numa rua de Lisboa, para quando senhor PM o fim da pobreza em Portugal?”. Não precisei de nenhuma lente para concluir que a imagem não era de uma rua lisboeta, embora a conclusão não me aquietasse o espírito. Uma mãe a dormir com o filho na rua – na realidade, podiam ser irmãos ou simplesmente amigos, mas a gente vê logo mãe e filho – é sempre uma imagem chocante. Se pretendesse algo similar em ruas nacionais, o autor da missiva ao primeiro-ministro podia ter visitado Caldas da Rainha. Ali para os lados do cemitério de Nossa Senhora do Pópulo, junto à Rua São João de Deus, há muito que se avistam diversos sinais de indigência. O mais eloquente é diariamente proporcionado por uma rapariga que ora se arrasta carregada de sacos, ora permanece deitada junto à murada do cemitério como morto vivo a quem não há PM que valha.
Imagino o que seria se ela resolvesse estacionar à porta do município, ou nas escadarias do Centro Cultural e de Congressos, ou quiçá na Rua Almirante Cândido Reis, a fazer montra com os trapos que traz vestidos, o traje indigente, as solas rotas. Ficando às portas do cemitério não incomoda ninguém, podemos fazer as compras de Natal em paz e entreter o espírito nas horas de lazer enviando mensagens inconsequentes ao PM através das redes sociais.
Uma vez pensei que estava morta. Aproximei-me cautelosamente, baixei-me e perguntei se estava bem. Ergueu-se de rompante como se a tivesse agredido. O medo que senti não era por certo menor que o medo que lhe provoquei. Estava viva, tão viva quanto eu julgo estar sempre que me ponho a pensar nestas coisas.
No início do século XVIII, Jonathan Swift, mais conhecido hoje como autor de “As Viagens de Gulliver”, dirigiu-se aos seus contemporâneos com “Uma Proposta Modesta”. Pretendia sanear as ruas de Dublin, terminando com a mendigagem pululante e viral. Considerando o desprezo inglês e a indiferença do clero, Swift achou por bem propor que as crianças vagabundas, tomadas por gado, passassem a ser literalmente assumidas como tal. Ficaria o país, desse modo, com stock de leitãozinho para consumo interno que permitiria acabar de vez com a fome dos irlandeses e limpar definitivamente as ruas de Dublin. Não sei se foi a partir do texto de Swift que a expressão “comer criancinhas ao pequeno-almoço” ganhou consistência, mas não me admiraria nada que da cabeça de alguma gente séria pudesse sair uma qualquer associação entre combate à miséria social e degustação de petizes.
Da minha cabeça, porém, não sai a imagem da rapariga com que me cruzo diariamente para os lados do cemitério. Estaciono ali o carro amiúde antes de ir trabalhar. Passo por ela, olho para ela, penso no que poderia fazer por ela. O que podemos nós fazer contra a miséria que nos rodeia? Enviar mensagens inconsequentes e hipócritas ao PM não me parece ser solução, mais ainda quando dessas mensagens pouco mais conseguiremos do que os patéticos likes do costume ou o apreço de um amigo que como nós também se preocupa com o mal dos outros confortavelmente sentado ao computador. Se o leitor me julgar cínico ou hipócrita, não se admire. É da época natalícia. Dá-me para isto.