CCXXVII – «Bendito e louvado seja ou memória de um velho Natal»

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No tempo da «estrada de macadame», na minha terra natal (Santa Catarina) havia o hábito de as pessoas cantarem o «Bendito» sempre que não havia músicos no coro da igreja paroquial. A Filarmónica Catarinense tinha um grupo de instrumentistas que tocavam e cantavam nas missas solenes mas, umas vezes porque estavam fora, outras porque não era possível reunir o grupo completo, não tocavam nem cantavam lá no alto do coro.

A chamada «Missa do Galo» apanhava-me sempre com muito sono e quando era pequeno ainda mais do que hoje. Felizmente a casa dos meus avós maternos (hoje em ruínas) era muito perto da igreja e havia sempre uma cama disponível para mim. Tenho uma memória muito viva do presépio: além de colocado em socalcos com os bonecos colocados em cima do musgo trazido do Cabeço Castelo e de uma gruta de cortiça onde estava o Menino Jesus, havia um barril de cinco litros cheio de água, disfarçado na verdura do presépio que, a um toque do meu tio Álvaro do Carmo Almeida, começava a despejar água num rio de cortiça dirigindo a mesma água a uma azenha onde a roda ostentava quatro bugalhos sem miolo. A água, veloz, ao cair dentro do buraco dos bugalhos projectava na roda uma velocidade enorme que só parava quando o barril com a água se esgotava por completo. Agora que o meu tio morreu não sei se alguém faz o presépio como ele mas penso que aquele presépio com o barril de cinco litros nunca mais se vai repetir. Comprei aqui em Lisboa (onde vivo desde 1966 e onde escrevo estas crónicas) um postal da Irmandade do Santíssimo Sacramento na igreja da Calçada do Sacramento e lembrei-me logo do «Bendito» que se cantava na igreja da minha terra no tempo da «estrada de macadame».

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A vida é um mistério, não é um negócio. O sacristão de Santa Catarina morreu mas continua à espera da carrinha dos Capristanos. A encomenda de 400 partículas para a missa campal não veio na carreira das sete e vinte; foi preciso o Vítor trazê-la de propósito. Vem na curva da Forca. Nas Caldas o Guimarães marca os desdobramentos para Peniche e Atouguia da Baleia. Se a vida fosse um negócio e não um mistério, o Álvaro teria trocado a sua pela do filho Zé Carlos em 1989 naquela manhã de domingo. Fui eu o padrinho que na pia baptismal lhe segurei a caixa dos santos óleos, tal como já antes tinha segurado ao Luís e ao Fernando. O Zé Carlos teria hoje 41 anos, poderia ter emigrado para a Suíça como o Luís ou vendido arcas congeladoras como o Fernando, poderia ter casado e continuado a ser aquilo que todos nós somos mesma quando não parece – navalheiros numa terra de oficinas de cutelaria. A Milu que agora cantou na missa de corpo presente foi a mesma que lhe fez as últimas contas do empregado Zé Carlos em 1989. Presidiu o padre Joaquim Nazaré e concelebrou o padre Maximino mas não vi os padres da nossa terra que ele tanto ajudou a preparar as missas novas nos anos 60. Mas vi o Henrique do Carvalhal. A vida é um mistério, não é um negócio Sei que o Álvaro tem andado às quartas de milho de casa em casa, saco cheio, na tulha vai subindo devagar mas há quem dê sete e quinhentos em vez do milho. Quando os fregueses dão dinheiro o sacristão fica a perder porque cada quarta de milho são oito escudos. Na sexta-feira doirada pelo sol, o pão de milho que comi na Taberna do Manelvina sabia ao milho das quartas da côngrua do sacristão de Santa Catarina.

 

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