Alguns comerciantes lá da terra juntaram-se para homenagear de surpresa meu pai. Há 50 anos que se dedica ao comércio na Rua Serpa Pinto, outrora a chamada “rua das montras” na zona histórica de Rio Maior. Meio século é uma vida, a experiência justifica respeito. Indefectível defensor do comércio tradicional, meu pai resiste com inteligência e esforço ao sufoco imposto por todos quantos julgam que o futuro está na disseminação das grandes superfícies. O futuro, essa coisa acerca da qual José Mário Branco disse tudo o que havia para dizer numa canção intitulada “FMI”, o futuro, caros leitores, constrói-se todos dias. E seria óptimo que o construíssemos aproveitando lições do passado. Mas nem sempre é assim. Daí que nos queixemos tanto da vida, que trabalhamos muito, ganhamos pouco, reformamo-nos tarde e cansados, com pensões que mal dão para medicamentos quanto mais para curtir o tempo que sobra. Depois é tudo passado na nossa vida.
Escuto meu pai dizer amiúde que uma das dores que traz é verificar que hoje em dia tipos empreendedores como ele foi jamais poderão conseguir o que ele conseguiu, não por ter sido melhor ou mais hábil, mas porque no universo comercial dos nossos dias os pequeninos estão “a priori” esmagados pelos grandes, partem em desvantagem, não conseguem crescer pelas próprias mãos, vêem-se aflitos para cobrir despesas e amealhar de modo a que seja possível investir. As rendas são um murro no estômago, a burocracia, o que se paga de impostos, todo o género de exigências que se faz a quem simplesmente queira ter um espaço onde sirva quem pretenda ser servido. E as margens, que se esticam para quem tem muito e encolhem para quem tem pouco. Tudo ao contrário do que devia ser.
Li algures nas páginas deste jornal que está aberta a possibilidade de transformar a antiga fábrica da Secla em mais uma grande superfície comercial. É mesmo do que estamos necessitados. A panorâmica é tão pobrezinha que outro hipermercado dava jeito, e mais outro e outro e outro, até termos a cidade transformada num “megahipersupermercado”. Eu, da varanda cá de casa, avisto logo quatro. Presumo que a vista se repita noutros pontos da cidade, dada a proliferação de congéneres. Alguns “minis”, ditos de bairro, vão resistindo como podem e sabem. Desconfio que dê grande jeito à maioria das pessoas sair de casa e ter à porta uma oferta de centenas de produtos de centenas de marcas com centenas de cores e centenas de sabores diferentes, nem que seja para repetidamente comerem as mesmas bolachas. É como os canais de televisão, temos centenas deles ao dispor para depois vermos sempre as mesmas coisas.
O problema está em que desta ilusão de diversidade não se retirem conclusões quanto à padronização da oferta e do consumo, assente na exploração de mão-de-obra a custo mínimo para máximas exigências. Satisfeitos com uma sociedade de licenciados, mestrados e até doutorados a trabalharem como caixas ou repositores de hipermercado, esquecemo-nos de que tudo isto tem um preço social gravíssimo: cada vez mais gente frustrada, taxas de natalidade miseráveis (quem pode sustentar filhos, pagar rendas, vestir-se, alimentar-se, deslocar-se com 580 euros mensais?), o comércio tradicional a definhar em pequenas lojas ao abandono. Numa cidade que se diferencia das demais pelo seu mercado tradicional, seria no mínimo de bom senso reforçar essa diferenciação estimulando o pequeno comércio. Contribuir para a sua extinção não é apenas erro crasso, denota uma total incapacidade de perspectivar o futuro. Porque não há futuro onde apenas se aviste servidão.