UM LIVRO POR SEMANA / 576 / José do Carmo Francisco

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UM LIVRO POR SEMANA / 576 / José do Carmo Francisco - Gazeta das Caldas
«Três linhas» de Leandro Ceia

«Três linhas» de Leandro Ceia

O ponto de partida deste livro é dado na página 3: «A história deles é simples. Conta-se em três linhas.» A referência geral é de Urbano Tavares Rodrigues no livro «Os insubmissos»: «Parecendo que não, o que mantém as pessoas jovens não é a riqueza: é a revolta.» Ora essarevolta expressa-se neste livro em histórias curtas, como na página 13:

«O futre jogador de futebol arrecada milhões. Se tivesse sido inteligente na escola ganharia o salário mínimo.» Há muito humor neste livro de histórias curtas como por exemplo na página 19:«Quiromância dopé. Ela vê o futuro na planta dos pés. Ler nas palmas das mãos é antiquado. A vidente é moderna. Mas sofre – o chulé das clientes.» Outro tipo de humor surge na página 24: «Este cego do metropolitano é robusto. E. com a sua voz baixa e timbrada, impositiva, trabalha incessantemente de carruagem em carruagem. Comprou o direito àquele troço, de três estações, às duas cegas que o exploravam. O período é das sete ao meio dia. Na Beira, a aldeia floresce-lhe de casas e os filhos estudam em Coimbra.»
O humor magoado contempla retratos. O Panteão Nacional: «O futebolista e também a cantora de fado – um refém e outra apoiante do Estado policial do passado – postos no Panteão por esta democracia… Só visto! – Faz prova de que o corpo velho apenas mudou de túnica.» Ou a Poesia: «Enquanto vivo o Poeta só fez edições de autor. Não queria ser explorado pelos milionários do país: os editores de poesia. Há estádios de leitura de poemas.
Poesia – grande mina de ouro da economia nacional. Depois de morto um editor publicou-lhe a Obra Toda. Não consta que tenha protestado.» Ou ainda os palcos: «Eu faço tudo de cu-entrada. / Ele gosta muito / E a mim não custa nada./ Gritava a cantora pimba na praça Couceiro. E repetia vinte vezes. Em baixo a velhustrada bate palmas. Paga à cantora a «junta de freguesia». Voto garantido nas próximas eleições. ( O reles promovido a cultura.)» Um aspecto curioso do livro é o passado visível em três histórias curtas. Primeira: «No parque arborizado junto à Penitenciária, aos domingos passeia o povo trabalhador. Melancólicos, os soldados namoram as criadas. Tristes, os meninos correm nas trotinetes. Os peixes, lentos, no lago sujo. 1955. A poucos metros, as grossas paredes, há longos anos separam do sol, isolam na cela o grande Camarada. Ninguém sabe que ele está ali.» Segunda: «1955. Na parada do quartel de Infantaria Um, a longa fila dos recrutas, ao sol, recebe o pré mensal de tostões. Nas folhas de pagamento a magra quantia de cada um vem escrita a lápís.» Terceira: «1958. No estendal, a mulher-doméstica do enfermeiro pendura, ao sol, dois enormes lençóis, acabados de lavar. Ao alto, junto à baínha, a sigla marcada a negro: HCL (Hospitais Civis de Lisboa).»
Na dupla inscrição entre um passado triste e uma presente não menos triste, «Três linhas» interroga um certo tempo português através da ironia e do humor.
(Capa: Explosão estelar de Sekalski, Composição: Paula Ferreira)