Crónica do Québec (Canadá) – Os dramas da itinerância

0
567
- publicidade -

Já lá vão muitos anos. Eu não teria ainda sequer atingido as dez primaveras. Mas a imagem está de forma indelével guardada na memória. Havia um velho ancião, de longas barbas brancas que,  por opção ou fatalidade, elegera como habitação uma pequena cabana feita a partir duma frágil estrutura em madeira, coberta por chapas de zinco, e com alguns caniços a servirem de paredes. O local era a margem Norte do rio Salir, no sítio onde hoje está a nova ponte que vai do estacionamento para o outro lado, ali a alguns metros da foz, da baía, da boca da barra, e da imensidão do Oceano. Na inocência da minha meninice, sempre que por lá passava, era com um sentimento de inveja que olhava para aquela personagem. Estava ali, sempre à beira-mar, livre como o vento, e não lhe conhecia obrigações.  Os pais não o mandavam  para a escola todas as manhãs cedo, e não tinha nenhum aborrecido e exigente patrão a quem prestar contas.

Mais tarde, já jovem adulto, dias  antes de regressar de Luanda no início do mês de Outubro de 1975 após cumprir o serviço militar, onde perdera doze meses da minha juventude, e ganhara doze anos de experiência de vida, Manuel,  um dos meus jovens colaboradores nativos  nos serviços de administração, enquanto ia dando vivas às tropas do «seu» MPLA que entravam na cidade, ocupando a estrada a toda a largura logo atrás do nosso quartel, dizia-me radiante:
– sabe Furriel, o Manuel agora nunca mais volta a trabalhar!
Surpreendido, pergunto, mas porquê ? Como não tem mais patrão, não precisa mais de  trabalhar. Descansei-o, e logo ali lhe disse que não tivesse ilusões,  pois rapidamente outros patrões apareceriam para substituir os actuais!
Como nós anos em criança, também este jovem angolano em 1975 pensava que, se não tivesse patrão, não teria de trabalhar.
Quando em 1991,  no filme «les Amants du Pont-Neuf», a maravilhosa Juliette Binoche, uma das actrizes francesas que mais fere a nossa sensibilidade, aceitou representar a personagem de Michèle, pintora decadente , empurrada para o grupo dos SDF (sem domicilio fixo) como os franceses gostam de identificar os itinerantes, em consequência duma relação sentimental menos conseguida, segundo palavras da própria, partiu para a experiência com o mesmo entusiasmo com que nós viamos aquele sem abrigo de Salir do Porto nos tempos da nossa meninice. No final das longas filmagens e depois duma interpretação magistral, na qual Binoche entra totalmente nos hábitos e vivências daqueles seres, que como único telhado tinham os arcos da  mais velha ponte de Paris, com todas as suas misérias e violências, declara que acabara de viver uma das experiências mais difíceis e dolorosas da sua já longa carreira de actriz, e para a qual, reconhece, não estava minimamente preparada quer física quer psicologicamente.
A maioria de nós está tão impreparada para a itinerância como na altura estaria Binoche. Desde já alguns meses que, invariavelmente, todas as manhãs depois de passarmos a ponte Jacques Cartier, uma das pontes que atravessam o rio São Lourenço, que separa, a minha relativamente pequena cidade de Longueuil da grande Metrópole de Montreal, exactamente à saída lá está, faça frio ou calor. Com a camisola número 7, e com as cores da equipa de futebol lusitana. Algumas vezes tenho parado para lhe dar umas pequenas moedas, mas nunca tive coragem suficiente para lhe perguntar se ele sabe quem era o dono daquele número 7 que diariamente ostenta  nas costas.
Apesar do Canadá ser um país extraordinariamente rico e com uma sociedade muitíssimo mais justa que a maioria dos países do nosso planeta, durante os longos meses de Inverno ninguém pode ficar indiferente aos múltiplos itinerantes que vagueiam de forma lenta e sem destino certo, pelas ruas das nossas cidades. Apesar de todos os abrigos que existem, cerca de 20% dos sem abrigo acabam por pernoitar na rua, mesmo quando as temperaturas descem abaixo dos -20 graus centígrados durante a noite. Alguns fazem-no de livre vontade, pois a partir do momento em que entram nos abrigos, sujeitam-se a rígidas regras de convivência, que têm de cumprir durante o tempo que passam no interior. Normalmente entram a partir das 16;45 e saem às 7:30 da manhã seguinte. À entrada têm de se identificar, o que para alguns não é agradável, por isso muitas vezes implicar um rápido regresso à prisão de onde andam evadidos. Antes de receberem qualquer refeição quente,  têm de tomar um duche obrigatório, que garante a todos, utentes e colaboradores, a higiene dos locais de acolhimento. Depois do jantar e do pequeno almoço de manhã, são obrigados a voltar para a rua que os acolhe, para de novo na noite seguinte terem de voltar a passar a rotina da anterior. Segundo a responsável por um dos abrigos de Longueuil, ultimamente e apesar das noites de Janeiro e Fevereiro últimos terem estado com temperaturas negativas extremas, tiveram algumas noites em que várias camas estavam inocupadas. Segundo a responsável, depois dos últimos aumentos das tarifas dos transportes públicos na cidade, muitos não têm capacidade para fazer face a esses aumentos, e evitam entrar nos mesmos sem pagarem o respectivo bilhete, pois arriscam-se a multas que não conseguem liquidar.  Acabam por não poder deslocar-se para os locais de  acolhimento. Muitos há que, quais Michèle e Alex da história do filme na velha ponte de Paris, com restos de velhos cartões e bocados de madeira constroem pequenas cabanas debaixo dos diversos viadutos da cidade e lá fazem a sua residência, similar à do «nosso» ancião de Salir do Porto.

- publicidade -

 

- publicidade -