D. Leonor nasceu no dia 2 de Maio de 1458, filha de D. Brites e de D. Fernando, irmão do rei D. Afonso V. Recebeu o nome da avó aragonesa que havia casado com o rei D. Duarte, seu avô. Casou com D. João, príncipe herdeiro do trono, em Julho de 1470, aos doze anos de idade, tendo o casamento sido confirmado a 22 de Janeiro do ano seguinte, por dispensa papal, necessária por os noivos serem primos.
Pelo casamento, D. Leonor passou a usufruir de direitos sobre a vila de Lagos. Além disso, a noiva possuía um luxuoso enxoval constituído por jóias e outros objectos sumptuários de grande valor. Em 1480, D. Afonso V acrescenta-lhe a doação da vila de Sintra e, em 1482, Alenquer, Óbidos, Aldeia Galega, Aldeia Gavinha, Torres Vedras, Torres Novas e Alvaiázere.
D. Manuel, rei que viria a suceder a D. João II, irmão de D. Leonor, alargou decisivamente os seus domínios, acrescentando-lhes em 1495 as vilas de Silves e Faro, várias casas junto ao Paço que a rainha mantinha em Lisboa e, em 1499, os senhorios de Vila Franca de Xira, Castanheira do Ribatejo, Azambuja e Cascais.
Por morte de sua mãe, em 1506, D. Leonor recebeu ainda a donataria de Almada, vários pequenos senhorios fundiários e prédios urbanos na cidade de Beja, além de escravos e bens sumptuários. Em 1492, os seus privilégios haviam sido confirmados pelo rei D. João II, seu marido.
Possuía, pois, um dos principais domínios patrimoniais do seu tempo, cuja área regional coincidia, por excelência com a da Estremadura, e cuja importância e significado foram reforçados pelo estatuto de autonomia jurídica de que gozava, principalmente devido à acção do rei D. Manuel I. Destacou-se pelo dinamismo que soube conferir à administração dos seus bens, sempre comprometida com preocupações de desenvolvimento económico e social.
D. Leonor foi o exemplo de uma rainha profundamente devota e religiosa, pessoalmente empenhada em percorrer itinerários de espiritualidade moderna, que se consubstanciavam na acção social e política e na participação activa nos problemas do seu tempo.
A sua acção como rainha, que acompanhou, no todo ou em parte, três reinados – D. João II, D. Manuel I e D. João III – pautou-se pelo cumprimento de um programa assistencial moderno, de cujo carácter inovador é exemplo o âmbito nacional das Misericórdias, uma das suas principais iniciativas e concretizações. A afirmação desta nova dimensão nacional do seu poder e da sua acção nota-se também na escolha de Nossa Senhora do Pópulo para designação da igreja do Hospital das Caldas, por sugestão do Cardeal Alpedrinha, nome que invoca o conceito de povo como um todo, dos súbditos perante os reis, à maneira moderna. A própria escolha do pelicano como divisa, ave capaz de se sacrificar pelos filhos até à própria morte, sugere uma concepção do poder régio como sacrifício pelos súbditos.
A corte da rainha D. Leonor era restrita, sumptuária, com programas culturais próprios; reunia à sua volta pessoas de elevada estatura intelectual, muitas delas do clero, como era o caso do já referido Cardeal Alpedrinha, D. Jorge da Costa, com relevante experiência internacional, e que apenas tinham como denominador comum a própria rainha.
D. Leonor patrocinou o restauro de Santuários, empenhou-se na reforma das clarissas, protegeu genericamente as congregações de observância franciscana, encomendou obras de arte, peças de joalharia, naquilo a que podemos chamar mecenato religioso constante. Além disso, exerceu influência relevante sobre a obra dramatúrgica de Gil Vicente na qual se empenhou pessoalmente, e o seu nome está ligado à introdução da imprensa em Portugal. D. Leonor possuía muitos livros, alguns deles mandados imprimir por sua iniciativa, tendo deixado a sua biblioteca em testamento às Clarissas da Madre de Deus, convento que mandara construir e onde se recolhera após a morte de D. João II.
Em relação às Caldas, o interesse e os investimentos da rainha ultrapassaram em muito a simples edificação da igreja e do hospital, mobilizando a sua acção e a sua influência continuamente para esta zona. D. Leonor foi a principal responsável pela nova povoação que cresceu junto do hospital, fundamental para o êxito do projecto assistencial que este configurava. Sucederam-se os privilégios concedidos às Caldas, de que são exemplo os privilégios e isenções fiscais concedidos aos seus trinta primeiros moradores, em 1488, por D. João II, a pedido da rainha, confirmados e alargados em 1498 e 1502 (elevação a vila) por D. Manuel I.
Devido à estratégia adoptada e aos continuados investimentos da rainha, a povoação cresceu, e logrou alterar os equilíbrios regionais a seu favor, acentuando a sua vocação de vila assistencial e hospitalar, alargada a doentes, pobres, peregrinos, religiosos mendicantes e, mesmo, a perseguidos da justiça, os famosos homiziados que aqui encontraram refúgio.
A edificação do hospital, cuja decisão ocorreu em 1484, pressupõe um pragmatismo notável, também patente na consulta efectuada ao cirurgião-mor da corte, mestre António (1485), para que este se pronunciasse sobre a qualidade das águas e, tendo em conta as características que apresentavam nos vários pontos em que afloravam à superfície, indicasse a localização mais adequada aos novos equipamentos. Esta atitude demonstra o valor já concedido à observação e à experiência como métodos de conhecimento e como este constituía base e motivo do investimento em curso.
Supõe-se que as obras do novo balneário tiveram início em 1485, que os primeiros doentes foram acolhidos em 1488 e a sua conclusão ocorreu, provavelmente, entre 1496 e 1497. O ano de 1500 marca o termo das obras referentes à igreja de Nossa Senhora do Pópulo, segundo inscrição epigráfica da porta de comunicação da igreja com a sacristia. Segundo Jorge de S. Paulo, a conclusão das obras do hospital dá-se em 1503. Por expressa encomenda da rainha a Gil Vicente, deu-se a representação do Auto de S. Martinho na igreja de Nossa Senhora do Pópulo, na festa do Corpo de Deus de 1504.
São muitas mais as disposições e as diligências, levadas a cabo por D. Leonor, respeitantes ao hospital e à vila. De entre elas destaca-se a redacção do Compromisso do Hospital das Caldas, para a qual consultou uma vez mais D. Jorge da Costa, através do seu capelão que enviou a Roma em 1507. O texto do Compromisso, um dos mais interessantes documentos sobre o funcionamento, os objectivos e toda a doutrina subjacente à construção do hospital, foi assinado pela rainha a 18 de Março de 1512. Cumprem-se agora 500 anos. O apoio da Igreja à concretização deste projecto vem exposto nas Indulgências do papa Alexandre VI, nas quais é salientado o carácter caritativo da obra da rainha, ideia que prevaleceu em toda a historiografia que se debruçou sobre esta temática.
A Associação Património Histórico, PH – Grupo de Estudos editou o texto do Compromisso em Catálogo de uma exposição que realizou na capela de S. Sebastião, em Junho de 1992. Da exposição fazia parte o documento original, no qual figura a assinatura da rainha, e que actualmente se encontra no Museu do Hospital e das Caldas. Foi comissária dessa exposição a associada Dra. Margarida Araújo que então disse sobre o Compromisso, no texto de apresentação: “Trata-se de um conjunto de regulamentos que visavam um correcto funcionamento hospitalar. Este manuscrito refere pormenorizadamente aspectos da vida administrativa e religiosa do hospital, do seu funcionamento nos planos da medicina e da assistência, do quotidiano da instituição, em suma. Trata-se de um documento a partir do qual é possível traçar autênticos quadros vivos da época.”
Tem a Associação Património Histórico entre mãos, actualmente, a preparação da segunda edição do Compromisso, num outro livro com outras características, em parceria com a Câmara Municipal das Caldas da Rainha e com o Museu do Hospital e das Caldas, que sairá brevemente. O seu lançamento contará com a presença de especialistas que farão a contextualização histórica do documento.
Em conclusão:
A acção da rainha D. Leonor nas Caldas de Óbidos, como eram conhecidas na época da fundação, integra-se de modo particularmente significativo num projecto mais vasto de desenvolvimento económico, social e assistencial do país, mas também de valorização do seu património. Os equipamentos de apoio aos enfermos existentes no reinado de D. Afonso V encontravam-se degradados e não possuíam identidade jurídica própria. A rainha D. Leonor conferiu-lhes essa identidade, construindo o hospital e estabelecendo a vila que nasceu à sua sombra e lhe deu sustentabilidade.
Este processo é marcado por uma originalidade própria, na medida em que inverte a normal ordem dos factos: trata-se de uma povoação que nasce de um hospital e para o servir, daí a sua centralidade no conjunto edificado, e não de um hospital que se constrói para servir as populações de uma localidade já existente.
O hospital e a vila das Caldas adoptaram como símbolos próprios a divisa de D. Leonor (pelicano) e de D. João II (camaroeiro), com autorização expressa dos dois monarcas. Muito merecidamente a vila tomou o nome de Caldas da Rainha, resumindo nessa designação, de modo particularmente feliz, as suas origens históricas e a sua vocação essencial. Poucas terras terão um nome tão apropriado, talvez porque nem todas conhecem de modo tão explícito as suas origens históricas e o papel que lhes foi reservado pelos seus protagonistas. Caldas (termas) que a rainha (D. Leonor) valorizou através de um programa que soube concretizar com êxito e do qual resultou esta terra: Caldas da Rainha. Assim saibamos nós, passados 500 anos, merecer e modernizar de acordo com o nosso tempo, como ela fez no seu, o precioso legado que a rainha D. Leonor nos deixou.
* Investigadora. Associação Património Histórico, PH – Grupo de Estudos