Aproxima-se o dia em que chegarão as medidas de austeridade e todos sentiremos as consequências da governação incompetente e mentirosa deste país. Até agora, “apenas” sentiam dificuldades os desempregados e aqueles cujos negócios ou actividades por conta própria eram afectados pela falta de oportunidades. A maioria dos cidadãos, entretanto, mantinha os seus rendimentos (os funcionários públicos até foram aumentados) e, ao invés de sentir uma redução do poder de compra, até o via incrementado por virtude da baixa significativa dos preços de muitos bens de consumo e serviços. Em breve, todos ficaremos mais pobres e aqueles que vivem no limbo orçamental terão de mudar de vida ou soçobrarão. Portugal está à beira de acordar de um pesadelo e perceber que a realidade confirma o sonho mau. Este é o nosso verdadeiro réveillon (despertar) e os três reis magos – F, M e I – já vêm a caminho, não de Belém mas de S. Bento.
Tudo isto era mais do que previsível (e evitável), se os cidadãos tivessem a cultura, o conhecimento, a informação e o interesse pela coisa pública que, lamentavelmente, não têm. Estou profundamente convicto de que a responsabilidade maior pelos sacrifícios impostos aos portugueses é daqueles que permitiram, por acção ou omissão, que se instalasse na governação do país um grupo de indivíduos de competência e idoneidade mais do que duvidosa, os quais trataram de ocupar e controlar a maioria dos lugares estratégicos do aparelho do Estado, da administração pública e dos institutos e empresas dominadas pelo poder político, no mínimo para benefício de interesses próprios, espúrios e ilegítimos, e, em casos como o do processo “Face Oculta”, para o assalto à propriedade colectiva através de burla e furto qualificado, corrupção activa e passiva, associação criminosa e tráfico de influências, entre outros. Contudo, não há aqui nada de novo, sempre foi assim: o mal instala-se quando o bem se desresponsabiliza e revoga.
Evidentemente que, nestas condições, qualquer dificuldade económica ou financeira, de origem nacional ou internacional, nos atingiria com a maior violência e com as piores consequências, pois o país não estava preparado para as enfrentar. Mas cabe perguntar: quantas personalidades sábias e credíveis, de diferentes quadrantes políticos e sociais, alertaram atempadamente para as falhas do sistema, as políticas erradas, as imprudências, os desmandos e as trafulhices a que se assistiu sucessivamente ao longo dos anos? Que atenção e consideração se deu a essas vozes que, por não se calarem, foram ofendidas, humilhadas, perseguidas e prejudicadas? Que valores foram preferidos e priorizados, em detrimento de outros que foram secundarizados e desprezados? Nesta história triste e ruinosa do Portugal contemporâneo, pode não haver santos, mas alguns são claramente mais pecadores do que outros, e por essa condição devem ser responsabilizados.
Aqui chegados, o importante é sobreviver. Cada um saberá de si, mas importa que todos nos preocupemos com todos, sobretudo com os mais fracos e dependentes – as crianças, os idosos, as pessoas com deficiência, os desempregados – a quem esta brutal e insensível governação não hesita em desproteger. Nunca a solidariedade dos portugueses foi tão necessária e decisiva como hoje, requerendo-se muita iniciativa e criatividade. Depois, é essencial que os cidadãos abram os olhos e não se deixem enganar, que vivam o presente mas cuidem mais do futuro, que abandonem preconceitos e sejam realistas, que sejam menos desconfiados e mais vigilantes, que não tenham medo nem preguiça de mudar, que olhem mais para os valores e menos para a barriga, que se interessem mais pelo bem comum do que pela mesquinhez. Os próximos meses, talvez anos, vão doer muito, já o sabemos, faltando-nos ainda ter a confiança de que os sacrifícios valerão a pena. Janus, deus do tempo e das portas, celebrado pelos romanos no primeiro dia de Janeiro, olha simultaneamente para o passado e o futuro, lembrando-nos que, afinal, tudo tem um antes e um depois. Se, à meia-noite, comeu as doze passas ouvindo as doze badaladas, confie nos seus desejos e lute por eles.
José Rafael Nascimento
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