Alberto Costa
advogado
Há uns cento e vinte mil anos, vivia-se uma fase climática quente («Marine Isotope Stage 5») com uma temperatura geológica record: mais uns 2 graus centígrados do que no presente, com o nível da água do mar 4-6m acima do actual. Uma situação semelhante à que nos é apresentada nas projecções que surgem agora no âmbito do debate sobre as alterações climáticas. No caso que referimos, essa fase veio a ser seguida por períodos bastante frios (entre eles um sugestivamente denominado « último máximo glaciário»).
O homo sapiens ainda não andava por aqui. Mas já tínhamos na região o homem de Neandertal. É o que resulta do contributo de dois especialistas da Universidade do Algarve para a «História Global de Portugal», recentemente editada, e de que um dos responsáveis é o Prof. Carlos Fiolhais. É essa leitura de Verão que aqui nos orienta.
Foram encontrados vestígios dessa presença, em particular, na zona da Praia do Rei Cortiço, a sul da Foz do Arelho («sítio arqueológico da praia do Rei Cortiço»). Além de caçar o auroque, o veado, o cavalo e o javali, usando instrumentos de pedra lascada, o homem de Neandertal fazia largo uso de recursos marinhos (peixe, marisco, aves, mamíferos aquáticos). É quase certo que uma Lagoa de Óbidos com uma dimensão muitas vezes superior à actual fizesse parte dos seus circuitos habituais, para não dizer quotidianos.
Até há pouco, desvalorizava-se o homem de Neandertal e, em particular, diminuíam-se as suas afinidades com o Sapiens e o seu contributo para a nossa experiência humana. Supunha-se que tinha desaparecido há algumas dezenas de milhares de anos – num processo que ainda permanece misterioso – e nada tinha deixado atrás de si. Hoje comprova-se que 2 a 6% do nosso ADN provem dele (pelo menos no caso das populações não originárias de África) e estão a ser localizadas e valorizadas com frequência crescente algumas das suas criações, incluindo, além de instrumentos, manifestações artísticas e vestígios de ritos funerários.
Parece haver muitos argumentos para, ao contrário da visão tradicional, o aproximar mais do ser humano actual. E até mesmo para afirmar, como alguns especialistas o fazem, recorrendo aos dados da paleogenética, que ele «vive em nós»: o Sapiens, de proveniência africana, afinal combinado com o Neandertal, de proveniência europeia. O híbrido que é o menino do Lapedo, descoberto perto de Leiria nos finais do século passado, não ilustrará também, aqui na zona, essa mistura?
Com o que vamos sabendo, numa espécie de sonho de outono, podemos imaginá-lo a chegar à região há mais de cem mil anos, atraído por lagoas e pores do sol de rara beleza – e, tomado pela magia do local, a decidir demorar-se por aqui.
E podemos pensar que ao agirem assim, chamados também pela beleza, estes nossos antepassados estavam a deixar-nos por aqui, inscrita no local, um sinal de humanidade que continua em nós mais de cem mil anos depois. ■