O pintor Eduardo Nery faleceu subitamente, hoje, após o que escrevo estas palavras, com o sentimento de perda relativamente a alguém de quem sempre recebi gestos de consideração. A sua relação com as Caldas teve períodos de aproximação. Tive a honra de estar perto e ser responsável por parte dessa ligação. A cidade ficou, porém, órfã de uma grande obra deste nome maior das artes plásticas, particularmente no azulejo, mas também com significativo trabalho na fotografia, gravura, pintura mural, tapeçaria e no vitral.
Nas Caldas, o seu contributo foi importante em duas iniciativas promovidas em meados da década passada.
A primeira prende-se com a sua participação numa das cinco equipas concorrentes ao designado à época “Multiusos das Caldas da Rainha”, propondo o desenho de todos os pavimentos exteriores em “calçada-mosaico”, a preto e branco, e ainda o projecto de vários vitrais destinados aos vãos maiores do edifício. Eduardo Nery escreveu em memória descritiva (inédita): “Como complemento deste trabalho, e em situação de alternativa, proponho-me ainda organizar plasticamente cinco muros exteriores com azulejo, no lado sul dos espaços exteriores, proposta em aberto que terá de ser desenvolvida mais adiante, caso a Câmara Municipal das Caldas da Rainha entenda que esse trabalho suplementar deva completar aquele que faz parte integrante deste concurso.
Assim, esses cinco muros revestidos a azulejo só serão projectados se houver vontade de os concretizar, embora se possa adiantar, que neles irei desenvolver a mesma temática geométrica dos vitrais e dos pavimentos, mas vivendo de uma grande vibração cromática semelhante aos vitrais. Poderei ainda adiantar que em cada muro, com frente e verso, serão desenvolvidas variações dentro destes motivos sem nunca me repetir, usando de preferência uma ‘paleta’ de cores semelhantes aos dos vitrais, para assegurar o máximo de unidade plástica em todas as formas da minha actuação plástica, entendida globalmente como um todo no qual procurei equilibrar unidade e variação, sempre dentro da mesma organização geométrica, que será assim comum a todo este espaço, tanto no interior do edifício, como no exterior. Finalmente, e dada a minha larga experiência de projecto de cor e de regulamentação da cor e texturas na arquitectura, em edifícios singulares e em cidades novas, como o Plano Integrado de Almada e a Cidade Nova de Santo André (Sines), ou ainda o vasto conjunto das fachadas da estação e dos viadutos do Campo Grande do Metropolitano de Lisboa, coloco-me na situação de poder intervir futuramente ao nível da definição da ‘paleta’ das cores e das texturas a utilizar nos edifícios situados na envolvente imediata desta praça, a construir posteriormente. Ou seja, tanto eu como os Projectistas deste edifício consideram indispensável assegurar o controlo da imagem global deste espaço urbano como um todo unitário, se a Câmara Municipal das Caldas da Rainha aceitar e estiver interessada numa intervenção global, a desenvolver a curto e a médio prazo.” (Memória Descritiva incluída na Proposta dos Arquitectos João Domingos Mestre e Fernanda Pinto Mestre para o Multiusos das Caldas da Rainha, 2004).
A segunda iniciativa refere-se ao Plano de Salvaguarda e Valorização do Património Cerâmico Urbano das Caldas da Rainha, para o qual contei com Mestre Eduardo Nery para a comissão consultiva e que possibilitaria a valorização do património cerâmico urbano, a normalização da imagem urbana e o desenvolvimento da área de aplicação, no respeito pela especificidade do seu valor e pela sua identidade cultural. De um lado, era preciso identificar elementos maltratados, para de seguida os restaurar e valorizar; do outro, incentivar novos investidores em urbanizações para a utilização do azulejo, para o que foram contactados construtores, promotores imobiliários, escolas e fábricas para que todos, em conjunto, pudessem dar o seu contributo para promover culturalmente a cidade.
Em qualquer dos projectos, o empenho de Eduardo Nery foi significativo. Mas, as Caldas perderam em ambos os casos, até porque no primeiro a história do concurso para o Centro Cultural e de Congressos é digna de um dia ser contada e escrita, pelas motivações que registei por parte de alguns intervenientes, cujo resultado final foi a construção de uma peça sem adequada integração no local e repercussão pública nacional face a outras propostas que podiam tê-lo feito; e o segundo foi abandonado pela autarquia, ao mesmo tempo que a delapidação do património azulejar tem empobrecido a cidade, com a complacência das autoridades políticas e policiais. Ultimamente, em diferentes circunstâncias, partilhei com Mestre Eduardo Nery esta perda incontrolada do património azulejar, também em Lisboa. Nunca esquecia o empenho que, em tempos, se fizera nas Caldas com o lançamento de um pioneiro plano de salvaguarda e valorização. Escreveu-o no seu recente livro monográfico. Mas, à parte destas duas iniciativas, sempre sublinharia, também, a sua recente ligação profissional com a Molde Faianças.
O azulejo é um dos ícones culturais e turísticos do nosso país, que merece reconhecimento universal, como património imaterial, por parte da UNESCO. Eduardo Nery contribuiu, substancialmente, para a valorização criadora e cultural deste património tão singular.
Jorge Mangorrinha