ELOGIO DA IMPERFEIÇÃO | Ouvir

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O título desta crónica também poderia ser, “Porque É Que Não Te Calas?” e surge a propósito duma história, duma conversa entre uma mãe e uma filha.
A miúda, adolescente, chegou a casa macambúzia e maldisposta. A mãe, cansada e a precisar de silêncio e de sossego.

– Mãe, hoje chateei-me com as minhas colegas na escola… preciso de falar contigo, pode ser?…
Suspirou e pensou: logo hoje que venho tão cansada… disse:
– Claro, depois do jantar falamos.
A miúda começa a sua narrativa de desencontros e embirrações, vividas como ofensas e ataques… a sentir-se insegura e vulnerável… a precisar de contar ao pormenor tudo o que se tinha passado…
A mãe, cansada, e a pensar que já tinha ouvido aquela história, mais coisa menos coisa… coisas de miúdos… histórias de liceu…
Num esforço para parecer atenta e interessada, vai interrompendo a narrativa e dando conselhos, fazendo comentários, dando razão à zanga da miúda… até que esta, irritada a interrompe e diz:
– Mãe, porque é que não te calas?
Instala-se a irritação e a crítica… que estava a ser malcriada e mal-educada…
– Não, não estou a ser malcriada… Eu não quero que me digas que eu tenho razão… que me digas o que eu devo dizer ou fazer… Eu só quero que me ouças… não preciso que me digas nada, só preciso de saber que me estás a ouvir… sou eu que tenho de chegar às conclusões, sou eu que tenho de resolver as coisas, sou eu que tenho o problema… muito provavelmente tudo o que me estás a dizer está certo… mas sou eu que tenho que lá chegar e não fazer só porque me dizes que é o mais correto… ou queres que eu seja uma menina da mamã?…
A miúda tinha razão. De algum modo tinha captado que a mãe não estava verdadeiramente disponível para ela, para aquilo que precisava… ser ouvida… ter o espaço mental de alguém disponível para ela… Muito mais difícil e exigente do que ter a presença e o discurso de alguém.
Naquele dia, a conversa correu bem. Depois deste episódio, foi possível o encontro.
Ela, a adulta ficou a pensar no ocorrido… A pensar nas inúmeras vezes em que tinha tido aquela sensação… de estar a falar para alguém que não estava verdadeiramente a ouvir… das discussões em que as posições estão definidas a priori e em que ganha o desgaste, o cansaço e o desencontro… em que ninguém está verdadeiramente interessado no que o outro sente ou tem para dizer… Como se todos estivessem munidos dum qualquer manual de instruções, em que basta seguir as regras para saber o certo e o errado… Como se às vezes, muitas vezes, se vivesse a vida como que fosse um tribunal, um julgamento permanente, com queixas, acusações e danos, em que tem que haver uma vítima e um culpado… Como se as relações humanas se pudessem traduzir numa contabilidade de deve e haver, formal e seca… Como se no fundo exista um medo de que o discurso do outro nos mude, nos altere e isso nos assuste e agrida…
Naquele dia, apesar do cansaço o sono foi difícil e tardio…
Falamos para comunicar… falamos para dar retorno ao outro… mas também falamos porque não temos espaço mental para o outro… porque não queremos de facto ouvi-lo… porque às vezes o difícil mesmo é o silêncio e a escuta, o ficar com o outro cá dentro.