Elogio da Imperfeição – Sombra

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Gazeta das Caldas

“Não sei bem o que estou a fazer aqui.
Hesitei… marquei… desmarquei… e voltei a marcar… Afinal esta é a maior constante da minha vida… Não saber bem o que estou a fazer, onde quer que esteja. Por isso olhe, aqui estou.
Sinto-me sempre uma sombra… Uma sombra a correr atrás daquilo que acho que devo, que deveria ser… ou pelo menos, que gostaria de ser.
Desde que me lembro de mim que ando nesta corrida… e os anos foram passando… e eu sempre à espera de me encontrar, de poder parar.
Vista de fora, esta parece uma conversa supérflua e fútil, eu sei. Tenho uma profissão, uma carreira em que sou reconhecido… Casei, descasei, tive filhos… aparentemente sempre com força, sempre seguro.

O problema é o peso que carrego… o peso de sentir que talvez não tivesse o direito de fazer tantas das escolhas que fiz… o medo de não ter a capacidade de responder a tudo aquilo que esperam de mim. A tudo aquilo que merecem de mim. A tudo aquilo que precisam de mim…
Sabe, às vezes parece que tenho um duplo… Eu sei que isto não é original, que é até quase um lugar comum, mas é a minha vida… é o que sinto.
Tantas as vezes em que chego a casa e aparece o outro lado… o lado parado, o lado calado, o lado anti-social, o lado que queria comunicar só com o olhar, sem ser preciso falar, sem ser preciso fazer coisas… só sentir e isso ser suficiente.
Tenho medo de ser mau. Não por acção, mas por omissão… Pode-se fazer mal por omissão e eu tenho medo do mal que a minha inércia, o meu desligamento, possam fazer aos outros…
Tenho medo que este bicho-do-mato que sou, me impeça de ser amado… mesmo que eu saiba que amo… mas preciso tanto do silêncio, da imobilidade, tantas vezes apenas de sentir que ao meu lado estão as pessoas que eu quero que estejam e não ser preciso fazer mais nada…
Está a ver?… É por isso que acho que sou estranho… é por isso que não sei se mereço os filhos que tenho… se eles não mereciam um pai melhor… Mas eu desejei-os e quero ser um bom pai… e quis e quero ser outras coisas, às vezes nem sei bem o quê… Vejo aquelas pessoas que se dedicam e fazem montes de coisas em família, com os miúdos… morro de inveja… daquela energia, daquela alegria… odeio a minha tristeza, a minha absoluta incapacidade de ter aquele ânimo permanente… E vem a culpa… a minha velha amiga culpa. E vem a recriminação. Nem é preciso que venha de fora… a guerra passa-se dentro da minha cabeça…
E estou sempre à espera do dia em que ela, aquela que eu amo, chegue e me diga que eu sou a sombra da pessoa que ela acreditou amar… que essa sombra ocupou todo o espaço e matou o que não deveria morrer… que também ela se canse, se farte… E eu vou reclamar, vou prometer que vou fazer diferente… mas cá dentro vou acabar por lhe dar razão… se até eu ando farto de mim… quem pode gostar duma sombra?…
Será que sou um egoísta? Será que é isso?… Será que posso aprender a viver com isto? Será que nunca houve sombra e este sempre fui eu?… Assim mais cinzento do que gostaria, mais triste, muito mais triste do que queria ser? Será que posso viver sem me sentir sempre tão julgado e tão culpado?”.