Era uma vez… – Ainda somos primos

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Gazeta das Caldas - Era uma vez
Beatriz Lamas Oliveira
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Um casal de lebres, o senhor e a senhora Lepus, está à espera de filhotes. Vivem no bosque, na orla da Quinta dos Farelos.
Não é a primeira ninhada que esperam juntos e estão felizes. Calculam a chegada de uma ou duas crias e como não precisam comprar enxoval, pois os filhos nascem cobertos de bela pelagem, aproveitam o tempo livre a alimentar-se para ganharem energia para o momento do nascimento.
Há legumes verdes em abundância. Chegou a primavera, o inverno foi chuvoso. A terra é rica e farta. Na quinta, os terrenos agrícolas com petiscos em abundância. Como ambos os Lepus nadam bem, e correm melhor, de vez em quando atravessam o lago da barragem da Portelinha para irem meter o dente nas culturas da Quinta das Dornas, onde há muito trevo e luzerna.
Espertos e lambareiros sabem bem como baixar as grandes orelhas e agachar o corpinho para ninguém os poder espreitar enquanto se empanturram. Depois, é bom de entender, o casal Lepus
gosta do nascer do dia e do anoitecer, para ir procurar comidinha. Quando não estão a comer, adormecem. Sonhar só eles mesmo sabem com quê. Muito dorminhocas, as lebres!
Ora acontece que nesta mesma primavera um casal de coelhos conseguiu fugir da gaiola onde a Dona Isaltina os andava a alimentar para, depois de gordinhos, irem para a panela.
A Dona Isaltina e o marido são os caseiros da Quinta dos Farelos.
A boa senhora, chegou de manhãzinha, com um grande braçado de trevo para dar aos Dentolas. Tristíssima, descobriu a cancelinha aberta e a gaiola vazia! Até as lágrimas lhe vieram aos olhos.
-Ai o meu Manel, que desgosto! Ele a contar com coelho assado para o S. João, e agora que lhe vou dizer!
O Senhor Manel ouviu o lamuriar acercou-se da eira onde a mulher tinha as gaiolas dos coelhos.
Conseguiu entender que as lágrimas vertidas e os soluços espaçados da esposa eram pela perda do casal de fugitivos.
-Mas oh mulher, então tu deixaste a gaiola aberta?
E ela a enxugar os olhos vermelhos, acenou que sim. Pois se só eles podem chegar ao local onde vivem os animais! A Quinta dos Farelos é toda murada e ali não entra ninguém sem que o Tejo, o grande cão de guarda, não desate a ladrar. Mas só ladra deitado. Mexer-se não se mexe, porque é velhote e preguiçoso. O Senhor Manel defende o seu cão com grande empenho. Ainda se lembra, como se fosse hoje, do dia em que o Tejo entrou na sua casa, cachorrinho lindo que era! Agora precisa de sopas e descanso, que mais queria a Isaltina?
Acontece é que o casal de coelhos, os Dentolas, também queria ver mundo e andava desconfiado do destino que a Dona Isaltina lhes reservava. Tinham-se esgueirado da gaiola, descuidadamente aberta. Ao nascer do dia, quando chegou a camionete do leiteiro, saltaram para cima de um molho de feno, e daí para a caixa aberta daquele táxi inesperado. Foi assim que, sem ninguém se aperceber, saíram da Quinta e encontraram o famoso casal de lebres que entraram nesta história logo na primeira linha.
Ambos os casais se miraram.
-Olha-me aquelas orelhas enormes – murmurou a Dentolas para o seu par. Que esquisitas!
-Olha que eles são bem maiores do que nós. Parecem gigantes. E que cor mais estranha! São assim avermelhados. E nós tão clarinhos!
O senhor Lepus tinha trepado a um tronco para observar melhor o casal recém chegado. Estava a explicar à cara metade que uns estrangeiros tinham entrado na orla da mata.
– Estrangeiros? Podem vir fazer-nos mal? -indagou a esposa Lepus apoquentada.
-Não me parece. Acho-os com focinho de assustados. Até os bigodes lhes tremem e a cauda parece que encolheu. Vamos falar com eles.
Aproximaram-se.O macho Lepus levantou bem as orelhas, empertigado. Estava com um pouco de medo, mas não o queria mostrar. A fazer-se de forte, perguntou:
-Quem vem lá?
E a dona Dentolas, mais confiada, chegou-se à frente e apresentou-se:
– Aqui, uma futura mãe, Dentolas ao seu dispor. Precisamos de encontrar uma boa cova para eu ter os meus filhinhos, que nascem fraquitos, sem pelo e quase não veem nada.
– Muito prazer, comadre. Também estou de esperanças. Mas os meus filhos nascem mais bem preparados. O meu Lepus vai mostrar ao seu companheiro alguns lugares para ocuparem. Comida há para todos. Sejam bem vindos.
O macho Lepus e o Dentolas partiram aos saltos vivos, mas um tanto fora de compasso, devido ao diferente comprimento das pernas de um e do outro.
O Dentolas afoitou-se a perguntar:
-Ainda seremos primos, não acha compadre?

Beatriz Lamas Oliveira
blamas599@gmail.com

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