Isabel Xavier
professora
Eis-me a escrever a vigésima terceira crónica para a Gazeta, a crónica que encerra uma colaboração que se iniciou em agosto de 2021. Na altura, fui uma cronista de substituição, já que o jornal considerava incompatível essa condição com a de candidato às eleições autárquicas, fosse qual fosse a lista concorrente. Por isso, julguei que a publicação das minhas crónicas decorrereria apenas durante alguns meses, até começar uma nova série de crónicas e, por isso, de novos cronistas. Afinal, cumprido esse prazo, o convite que me fora dirigido pelo diretor da Gazeta, José Luiz de Almeida e Silva, foi renovado por mais um ano.
Das vinte e três crónicas que escrevi, treze foram sobre memórias da infância e da adolescência e apenas dez, entre as quais esta, se referem a acontecimentos, a leituras e a análises atuais. Mesmo assim, é sempre da atualidade que se trata, porque quem escreve sobre o passado transporta para essa escrita a pessoa que é no momento em que escreve. Nunca fui muito de olhar para trás, de recordar o que já vivi. Muitas vezes, contam-me acontecimentos do passado em que eu também estive presente, e não me recordo de nada. É como se estivessem a contar-me uma história, da qual eu nada soubesse, que estou a ouvir pela primeira vez. Doutras vezes, sou eu quem conta uma série de acontecimentos, que recordo, mas como se não tivessem sido vividos por mim, como se deles tivesse tomado conhecimento por interposta pessoa.
Então, como justificar esta tendência para buscar nas vivências do passado o assunto principal destas minhas crónicas? Será por estar a ficar mais velha e essa seja uma característica inerente à minha idade? Não sei porque será, mas sei que me tem sabido bem, que tem sido uma boa experiência, gratificante e enriquecedora. Algo que me mostra a mim mesma uma nova faceta de mim. E isso é extraordinário. Só tenho que me sentir grata e que me preparar para deixar de ter esta incumbência de escrever, de quatro em quatro semanas, uma crónica para a Gazeta das Caldas que não exceda dois mil e quinhentos caracteres, como já vinha sendo hábito.
Na intenção de fechar com chave de ouro, partilho uma citação sobre a memória de um dos meus autores favoritos, Jorge Luís Borges, a propósito da minha colaboração na Gazeta das Caldas: “Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As revelações resvalavam, momentâneas e ávidas: o vermelhão de um oleiro, a abóboda carregada de estrelas que também eram deuses, a lua de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne do javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projeta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma.”■