Este Consumo Que Nos Consome – A sala magenta

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Mário de Carvalho, indiscutivelmente um dos maiores ficcionistas portugueses do nosso tempo, proporciona-nos regularmente uma viagem aos usos e costumes da nossa sociedade: malta da tropa ou dos partidos, malta da construção civil ou das artes e letras, fica durante algumas centenas de páginas debaixo de fogo, envolvendo-se(envolvendo-nos) no burlesco ou na quinta-essência da revista à portuguesa.
Desta vez o anti-herói do seu fabulário chama-se Gustavo Miguel Dias, é um obscuro realizador de cinema em queda livre de conhecimentos e solicitações da máquina comercial, foi espancado numa bomba de gasolina, saiu esmocado, foi um bom pretexto, à beira da miséria, para viver à conta da mana e fazer um exercício de revisão de vida, à boa maneira dos Jesuítas, o exame é tão duro que até houve a tentação, em desespero pícaro, de se embebedar e atirar para um charco de água, uma tentativa de suicídio de ópera bufa. A diferença entre esta paródia de “A Sala Magenta” e o grandioso romance “Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina” é que agora o ficcionista não esconde a amargura da visão do semelhante, a perda de esperança de um pré-sénior dependente atirado para a Lagoa Moura, ali ao lado de Grodemil, envolvido pelas gentilezas da mana Marta que o ajuda na convalescença, de tão boazinha que ainda não dimensionou o inútil que tem para sustentar até ao fim dos tempos.
O realizador falhado está completamente nas mãos de Mário de Carvalho, é a principal vítima do desencanto do escritor e, por simpatia, a sociedade portuguesa da Lagoa Moura até Lisboa vai ser passada pelo crivo. Gustavo Miguel Dias não se pode mexer, não só pela perna engessada como pelas costelas partidas e dores várias, quando tudo isto começa. Solitário, rememora a sua vida, o que aconteceu à Marta, é impiedoso com o escroque do sobrinho, Cláudio, que anda cheio de lábia e ronha a extorquir uma notas à mãe.Ele enternece-se quando fala de Marta: “Bonita que fora mana, doces lhe iam agora e entristecidas as feições, com dois arcos já descaídos melancolicamente sob os olhos, da linha dos lábios, mais resumida e vincada que outrora, nascia um irradiar de breves pespontos, ainda sumidos, não tão flagrantes como a pele do pescoço já a querer desaprumar. Ao fim de tantos anos, só agora reparava nos traços da irmã, figura tão naturalmente comparte da sua vida que não considerara sequer a eventualidade de lhe apreciar as feições, mormente pela inutilidade de fazer valer essa avaliação”.
Gustavo reexamina a sua vida, os sues amores e desamores, a paixão que nutrira por Maria Alfreda, era em sua casa que existia a sala magenta, era ali que todo o seu ser rejubilava. Está sem um chavo, Marta sugere que vá à segurança social, fala com os vizinhos à volta da Lagoa Moura, é procurado aqui e acolá por relações do passado, Julião Couraceiro, “o convexo produtor da Ex-Machina Filmes, de pronúncia beirã sibilada e gosto pelo circunlóquio”, finge que lhe paga mas não paga o que lhe deve, toda esta vida é um deserto, foi tudo uma perda de tempo, viveu a ilusão até chegar esta prova dos nove da sua inutilidade. Os dias passam insípidos em Lagoa Moura, o corpo lá se recompõe, Gustavo arquitecta uma grande bebedeira, vai acabar tudo numa farsa, onde ele supunha um final digno de uma ópera de Wagner acaba tudo numa risota tipo Maria Vitória. Gustavo Miguel Dias é a grandeza bacoca a que chegou muita gente que entrou num estradão sem retorno depois de muita mentira no Portugal europeu dos nossos tempos. É tudo farsa, só que o burlesco anuncia-se em tons de magenta, só para nós vermos, é esta a cor da esperteza saloia dos novos vencidos da vida.
Grandessíssimo romance, mesmo com toda esta ironia amarga, mesmo sabendo nós onde fica a Lagoa Moura e o multibanco de Grodemil.

Beja Santos