Este Consumo Que Nos Consome – Os charutos de Churchill

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Confesso que iniciei a leitura deste livro mais movido pela curiosidade do que julgava ser uma bisbilhotice que pela importância do conteúdo. A surpresa é que se trata de uma leitura absorvente, quase mágica, a ponto de nos rendermos à iconografia desses charutos que identificavam o primeiro-ministro britânico na sua luta encarniçada contra Hitler. Lê-se com paixão, tal o encanto da história, só inessencial por se considerar uma bagatela aqueles charutos com que Churchill apareceu em milhares de imagens, projectando-o como farol da resistência democrática (“Churchill e os Charutos, uma paixão que atravessou a guerra e a paz”, por Stephen McGinty, Alêtheia Editores, 2008).
No século XIX, o charuto é estatutário, um luxo de uma clientela selecta onde se inseria o pai de Winston Churchill, Lord Randolph Churchill. A principal tabacaria londrina do tempo era a Robert Lewis que vendia produtos dispendiosos como ao mais finos charutos cubanos ou os cigarros Balkan. Em 1900, Churchill, na altura com 25 anos, entrou neste santuário do fumo e iniciou uma relação que só terminaria com a sua morte, em 1965. Nesse primeiro dia, o jovem Winston comprou 50 Bock Giraldas, um pequeno havano, por 4 libras, e uma caixa de 100 cigarros Balkans, que lhe custou mais 11 xelins. A Robert Lewis pertencia ao judeu José de Solo Pinto que soube imprimir ao negócio uma selecção de produtos que tornaram a tabacaria no primeiro estabelecimento londrino do género. Segue-se a história dos hábitos tabágicos de Churchill e a sua chegada a Cuba, que o tornou um indefectível apreciador de havanos de alta qualidade. Entretanto o autor aproveita para nos dar conta da importância do havano e como este se celebrizou a partir do século XIX, graças a marcas que percorreram o mundo inteiro como Upmann, Hoyo de Monterrey e Romeo y Julieta. Como observa o autor, “A aristocracia dos fabricantes de charutos são os enroladores, dos quais se diz que precisam de seis anos para se tornarem competentes, dez para serem hábeis e uma vida inteira para chegar à mestria. Estes homens – e em anos mais recentes também mulheres – eram capazes de pegar num monte de folhas e enrolar uma dúzia de charutos numa hora, passando habilmente pela nove fases do processo de fabrico e manufacturando um produto acabado com uma boa vitola – o termo utilizado para descrever o equilíbrio entre tamanho, potência, forma e apresentação”.
Em 1926 Churchill e a mulher compram Chartwell uma mansão do século XVI que será o novo lar da família. O charuto, as suas caixas e os seus humidores, marcam presença à escala dos milhares, guardados numa pequena sala do primeiro piso. Nesse tempo Churchill e o charuto já vivem em fusão, o político tinha consciência da imagem que o charuto projectava, uma imagem de confiança descontraída, muito importante para o eleitorado. Escreve o autor: “O charuto era igualmente uma espécie de cata-vento do seu tempestuoso temperamento: podia tirá-lo da boca e agitá-lo no ar realçar um ponto ou, quando estava particularmente furioso rosnar uma ordem com ele entalado entre os dentes. Fazia todo um espectáculo de preparar o seu charuto, riscando várias vezes o fósforo e expelindo várias baforadas de fumo… Em encontros mais privados, ficava a fumar em silêncio, deixando que a cinza crescesse até representar metade do comprimento do charuto. Os colegas ficavam como fascinados por aquele aparente desafio às leia da gravidade e quase esqueciam o que estava a ser dito…”.
Como não há uma página aborrecida neste livro, em que os havanos entraram irremediavelmente na vida do mais célebre político britânico de todos os tempos, é inevitável chegarmos à Segunda Guerra Mundial e à importância dos charutos de Churchill: as medidas de segurança para evitar o envenenamento do líder britânico; as ofertas vindas de havana, as ofertas de charutos feitas pelos seus compatriotas e pelos admiradores como o multimilionário Samuel Kaplan, seguem-se as peripécias dos havanos que vinham de Cuba e que o regime de Fidel Castro alterou a via de abastecimento. A partir de 1946 Churchill viaja, numa doce reforma que só interrompe quando volta meteoricamente ao poder, em 1951. Fuma, bebe e come do melhor, é um ídolo consagrado tem no milionário cubano Antonio Giraudier um admirador incondicional, que o abastece até ao limite das suas posses, quando todos os seus bens são nacionalizados em Cuba.
A memória de Churchill é indissociável dos seus charutos: as suas relíquias de fumo vendem-se em leilões, há esculturas dos seus charutos, no fundo o seu verdadeiro carburante e que determina a mania churchilliana.
Era inimaginável uma leitura tão estimulante em que o aparentemente insignificante ganha todo o significado iconográfico. Afinal, aqueles bens de consumo criaram a imagem do político, deram-lhe a vibração e a forma definitiva com que ele passou à História, junto às suas obras, um riquíssimo somatório de grandes vitórias e um número não desprezível de grandes desaires. Um sinal de vitória com dois dedos, um charuto entalado num sorriso, eis um país que aceitou segui-lo em toda a provação quando ele só prometeu “sangue, suor e lágrimas”.

Beja Santos