Corria o ano de 1966, em pleno tempo da «estrada de macadame» quando comecei a ouvir com alguma regularidade a pergunta: «Já leste a crónica do Portela?» O Portela era Artur Portela que, ao tempo, assinava Artur Portela Filho. Eu estava desde 9-9-1966 no Departamento de Estrangeiro do BPA (na Rua do Ouro nº 110 primeiro andar) e quem fazia a pergunta entre si eram os nossos três mosqueteiros (José Palla e Carmo, Carlos Monjardino e Afonso Costa) a que se juntava, sempre que descia do segundo andar, o quarto mosqueteiro – Vasco Vieira de Almeida. Era inevitável. Os três mosqueteiros sempre foram quatro – os nossos em 1966 não fugiam à regra.
Um destes dias encontrei-me com Artur Portela (n. 1937) para uma conversa à volta dos seus próximos projectos literários. O depoimento foi combinado para a Revista Ler e o encontro aconteceu num Centro Comercial na Rua da Misericórdia ao lado da Muralha Fernandina de Lisboa. Foi uma conversa mesmo, mas mesmo, ao lado da História.
Mas não é sobre o depoimento para a Revista Ler que esta minha crónica se justifica. De facto no tempo da «estrada de macadame» eu lia as crónicas de Artur Portela e vale a pena recordar duas. Por exemplo os «cadernos de um burguês»: «É necessário ser-se moderno mas é perigoso ser-se modernista que é o mesmo que existencialista e quase tão aberrante como comunista. Na Idade Média odiava-se abertamente a cultura e mandava-se pendurar os pedaços de qualquer trovador talentoso para meter na ordem os que tivessem veleidades líricas. Hoje a cultura é admitida. Há até um certo respeito pela cultura. Um respeito desconfiado. Sente-se a necessidade de ter cultura geral que outra dá muito trabalho e não vale a pena. É preciso não se estar a Leste de todas essas coisas que vão acontecendo pelo Mundo. É urgente ter-se na ponta da língua uns dois nomes de romances de Thomas Mann, Huxley e Hemingway. Precisar bem que o Cubismo não foi antes do Impressionismo e que há dois Strauss, o das valsas e o a sério. Shakespeare é do tempo da rainha Isabel, claro que era a Bette Davis. Mas já não estamos tão certos quanto às relações entre Zola e Vittorio de Sica, se bem que saibamos que ambos têm qualquer coisa a ver com o realismo. Põe-se um problema: Carlos Magno teria mesmo invadido o Egipto ou, pelo contrário, foram os mouros que passaram os Pirinéus?»
Uma coisa que me espantava no tempo, eu era um miúdo, era a facilidade com que se dizia: «Eu trabalho para o Estado, fulano foi trabalhar para o capitalismo, foi para uma empresa!». Artur Portela fez o raio X do caso numa crónica: «Vêm de Económicas e Financeiras, de Engenharia, de Sociologia. Têm quarenta anos. São apolíticos. Estão na Assembleia Nacional, na Câmara Corporativa, nos Gabinetes Técnicos. Fazem sauna, são católicos progressistas e falam alto, forte. São a 3ª geração de 1926. A primeira era Mário de Figueiredo. A segunda, Ulisses Cortez. A terceira, Francisco Balsemão. A política, ela própria, globalista, surge-lhes como um romantismo. Não há política. Há políticas. Não há política. Há soluções. Portugal é um exercício. A Europa um exame de frequência. O desafio americano, um concurso. A EFTA, um treino. O Mercado Comum, um curso semestral. A Esquerda e a Direita deixam-nos indiferentes. São a nova aristocracia.» Existe algo de terrivelmente actual nestes dois textos citados.
Falta lembrar que um dia a PIDE foi às livrarias de Lisboa à procura do seu livro «Feira das Vaidades» para o apreender mas, por lapso assumido dos empregados das mesmas, os agentes levaram o homónimo livro do inglês William Thackeray. A apreensão só se consumou no dia seguinte quando o inspector da PIDE descobriu que aquela não era a «Feira das Vaidades» de Artur Portela Filho. Afinal havia outra edição…