No tempo da «estrada de macadame» o meu pai (José Francisco) era motorista do Ministério da Justiça e foi trabalhar para o Cartaxo mas nós continuámos a viver em Vila Franca de Xira. Mais precisamente no Bairro do Bom Retiro onde a minha mãe (Olímpia do Carmo Almeida) ensinava as primeiras letras a várias crianças do Bairro. Eu estava na Escola Técnica, as minhas irmãs na Escola Primária e não era prático mudar-se uma família inteira para o Cartaxo naqueles anos 60. O meu pai ia de boleia todos os dias; num tempo sem auto-estradas, os carros na velha Nacional nº 3 eram sempre os mesmos e as boleias também. Mais tarde fui ao Cartaxo em reportagem tanto para «O Mirante» como para o jornal do «Sporting» e ocorre-me uma história deliciosa contada por Júlio de Almeida no livro colectivo «Uma hora de jornalismo», editado em 1928 pela Caixa de Previdência dos Jornalistas.
Nos primeiros dias de Janeiro de 1919, a conspiração contra o governo presidido por Tamagnini Barbosa atingiu o máximo de intensidade com o movimento revolucionário de Santarém. Júlio de Almeida foi o enviado especial de «O Século» para acompanhar de perto a acção da coluna militar organizada em Lisboa para submeter os revolucionários. Acompanhado de António Vasques (repórter) e Marques da Costa (fotógrafo), o enviado especial do matutino ainda foi a atempo de ver que o formidável fogo de artilharia e o tiroteio de infantaria tinham causado apenas a morte de um milhafre que jazia no telheiro do cinema da localidade. Depois inteirou-se da concentração das unidades militares que, de acordo com as forças do Norte, deviam estabelecer o cerco a Santarém na manhã seguinte. Oldemiro César, enviado especial do «Diário de Noticias», chegara ao Cartaxo num side-car e, na impossibilidade de vir a ao seu jornal, pediu a Júlio de Almeida que transportasse para Lisboa as suas impressões escritas. À noite, deixando António Vasques no Cartaxo, o enviado especial e o fotógrafo partiram para Lisboa. Na Póvoa de Santa Iria tiveram um mau encontro com um automóvel conduzido por militares para quem os salvo-condutos fornecidos pelos Ministérios da Guerra e do Interior pouco ou nada valiam, apesar de estarem em regra. Vasculharam, leram e riscaram algumas passagens dos apontamentos de Oldemiro César e avisaram Júlio de Almeida que era melhor ser ponderado na sua reportagem para «O Século».
Na manhã seguinte regressaram os dois ao Cartaxo na companhia de um sargento do Ministério da Guerra que à noite trabalhava na tipografia de «O Século». Um tenente de artilharia deu ordem de prisão aos três como inimigos do Governo e lá foram escoltados para a sede da Câmara Municipal sendo entregues a quatro alunos da Escola de Guerra. O jornalista Oldemiro César, ao visitá-los na Câmara, ficou também ele detido. Completamente em pânico pela sua condição de militar (de dia) e tipógrafo (de noite), o sargento já se via condenado a prisão perpétua em Conselho de Guerra. Para piorar a situação um tenente de lanceiros perguntou à porta da Câmara em alta voz:
– Estes é que são os jornalistas que foram presos por escreverem contra o Exército?
Tal pergunta indignou o Dr. Afonso Manaças, comandante do posto de socorros instalado na Câmara e passado pouco tempo os jornalistas eram postos em liberdade. Na praça de touros os militares recusaram-se a fornecer combustível ao enviado especial de «O Século» que só chegou a Santarém, pessimamente alimentado, com as tropas do Governo. Obtido o salvo-conduto do coronel Andrade Velez, governador militar, Júlio de Almeida mostrou o mesmo à sentinela no regresso a Lisboa. Este respondeu intrigado: – Calha bem, eu não sei ler. Isto deve estar em ordem. Pode seguir!
José do Carmo Francisco