Joana Tornada
historiadora
Os sentimentos da revolta contra o Estado Novo e a sua política colonialista e militarista dominaram o Golpe das Caldas de 16 de março de 1974. Os indícios do conflito revelaram-se de forma explícita e implícita ao longo de todo o mês. É no dia 16 de março que a tensão gerada pelas ideologias opostas, fascismo e democracia, se torna violenta e leva o MOFA (Movimento dos Oficiais Forças Armadas) a exigir o controlo do governo através do futuro golpe militar. Durante este mês, evidenciou-se a divisão entre governo e oficiais das Forças Armadas (nomeadamente, na reunião de Cascais, na prisão de oficiais do Movimento e na demissão dos Generais Costa Gomes e Spínola). Numa lógica da posteridade é evidente que as duas partes já não dependiam uma da outra e reconheciam na força legitimidade para mudar o país (‘acertar o passo’). Esta legitimidade foi muito mais construtiva para os oficiais do que para o governo do Estado Novo, pois criou dinâmicas complexas e independentes.
Ao analisarmos os atos e ações do dia 15 de março, percebemos que prevaleceram tentativas para evitar o conflito ou de promoção de acordo entre oficiais e seus comandantes, por todo o país. Na sua maioria, prevaleceu a autoridade e a rápida tomada de decisão. Em Penafiel, as ligações telefónicas foram cortadas e, em Viseu e em Lamego, o comandante cooperou com os oficiais quando estes transmitiram a sua solidariedade para com os generais recentemente demitidos. Indignados e sem confiança nas chefias militares, os oficiais do RI5 não conseguem manifestar-se junto do novo comandante, chegado nesse mesmo dia e que segundo o Ten. Matos Coelho, ostentava uma atitude altamente disciplinadora. A injustiça e humilhação persistentes tornavam-se mais visíveis.
As atitudes e o espírito dos oficiais do Movimento são dominadas por um estado latente. A Guerra Colonial atingira uma situação limite e exigia uma ação rápida e pacificadora. A intransigência do governo do Estado Novo quanto à permanência no território e à ação militar agressiva fez sobressair o ‘espírito da Guiné’, e a expressão de ‘rastilho’ do telefonema de Lamego. O cadinho de todas estas tensões e mudanças resultou na necessidade de um golpe militar de derrube do regime, em março de 1974. Nas Caldas, este sentimento era mais forte devido à presença de duas forças (oficiais oriundos de cadetes e milicianos). Durante todo o dia e noite de 15 de março, as ligações telefónicas proliferaram e foram desorganizadas em todo o país. Persistiram as dificuldades em perceber o que se passava. Embora o Movimento contivesse a sua complexa rede de ligações de uma ação conjunta, este foi incapaz de conduzir as suas ligações, deixando-o vulnerável a ações extemporâneas. Muitos contactos decorridos baseiam-se também na ambição pessoal do Gen. Spínola. Contudo, desta dinâmica não entrou em conflito, coexistindo paralelamente. O general é um elemento determinante da ligação entre os dois movimentos de oficiais e o Cap. Marques Ramos foi nomeado elemento de ligação entre os dois. Enquanto cessaram as comunicações entre unidades e elementos de ligação, o Maj. Saraiva de Carvalho observou atentamente todos os movimentos. Nos dias 15 e 16 de março de 1974, as atitudes do Governo, Movimento, militares, população e imprensa promoveram a crença, o desafio e a marginalização do grupo indignado, injustiçado e humilhado. Estas originaram uma ordem frágil, mas serena. O sentido dos acontecimentos do 16 de março reside nas ligações que consolidou e frutificou, no impacto político que causou, e na inquietação que gerou.
Entre 16 de março e 25 de abril de 1974, prevaleceram as contradições na disputa pela pátria e na desigualdade, origem das motivações dos vários grupos presentes. Nos grupos dominantes, foram-se destacando sentimentos de legitimidade e aceitação do seu lugar na História. A desarticulação da instituição militar, em que se integram estes oficiais, é um facto histórico relevante para a compreensão do fim do Estado Novo. Sob este pano de fundo formaram-se fortes ligações (fruto de posições antagónicas), escolheram-se apressadamente estratégias, caiu-se em contradições ignoradas e expuseram-se vulnerabilidades. Ou seja, viveu-se a “quente” e muito rapidamente.
As transferências de 8 de março não desmantelaram o Movimento, mas prejudicaram as suas ligações, colocando-o porventura numa posição muito visível. Todavia o Cor. Viana de Lemos, secretário de Estado do Exército, teve conhecimento das ligações do Movimento e nada fez.
O Segundo Manifesto dos Capitães, divulgado a 18 de março, desvendou as profundas raízes e ligações dos acontecimentos da madrugada e afirma perentoriamente a necessidade de “extrair lições”.
O regime desprezava as motivações dos participantes. Os militares aceitavam, claramente, que a situação das FA, em março de 1974, era um sintoma das profundas contradições políticas da sociedade portuguesa. No RI5 das Caldas da Rainha, a confusão do golpe centrou a atenção do Governo e da DGS. Segundo José Freire Antunes, “sob a cortina de uma vitória fácil, o fracasso da Revolta das Caldas da Rainha, aprofundou o isolamento político de Caetano, agora totalmente prisioneiro da corrente integracionista.”
A imprensa e a Gazeta das Caldas não referiram as motivações dos oficiais sublevados. Contudo, o jornal Época salientou os perigos que o país corria ao permitir este grave ato de indisciplina, evidenciando as suas contradições e sinal de mudança. A certeza de que o país precisava de uma mudança de regime não criou divisões, mas sim trajetórias diferentes. Se, inicialmente, estas foram condicionadas pelas relações pessoais e profissionais, em março de 1974, os meios utilizados pelos oficiais do MOFA foram determinados pelos conflitos que se geraram na política interna do país.
Bibliografia
ANTUNES, José Freire, Os americanos e Portugal 1969-1974: Nixon e Caetano promessas e abandono, Difusão Cultural, Lisboa, 1992, p. 339
COELHO, Major–General Adelino Matos, Intervenção no colóquio – debate “Discutir a revolta de 16 de Março de 1974 «Revolta das Caldas»”, organizado pelo Centro de Documentação 25 de Abril e pela delegação de Coimbra da Associação 25 de Abril”, Coimbra, 16 de Março de 2007
TORNADA, Joana de Matos, Nas Vésperas da Democracia em Portugal, o Golpe das Caldas de 16 de Março de 1974, Almedina, 2009. ■