O estudo de Augusto Mateus pôs dedos na ferida: a indiferença do governo quanto às actividades culturais artísticas, por um lado e a explicitação da diversidade constitutiva de um sector económico feito de três partes distintas – e não amalgamadas num todo incaracterístico -, 1) a criação artística e as suas tradições disciplinares patrimoniais, 2) as indústrias culturais e 3) a dimensão criativa própria das mercadorias, na esfera lata do mercado, o design de objectos de consumo.
Convém aliás aqui clarificar que a dimensão criativa de actividades industrializadas, que obedece à satisfação de lógicas massivas de gosto elas próprias induzidas pela estratégia quantificadora do marketing que promove os diversos produtos na relação de concorrência, nada tem a ver com a actividade artística, esta desligada de objectivos imediatos, destinada ao fruidor cidadão potencial, solitário ou em assembleia, a públicos mais iniciados e não ao consumidor perdido na massa – uma, virada para o humano, a outra, para o mercado. Uma coisa é a linguagem imprevisível da criação artística, cujos códigos de leitura têm de ser reinventados sucessivamente porque não se trata de dar a ler algo já lido, outra coisa é a aplicação de normas de gosto estandartizadas para satisfazer padrões de vida que encontram na sofisticação do design uma dada exibição de status, particularmente através da lógica das marcas que, no presente, estabelecem uma norma geral de comportamento e sinais exteriores de troca simbólica consumível e ideológica: a aparência como teatro de uma essência possível. Desde que a sociedade ganhou este carácter de democracia massiva e falsamente igualitária, que as classes médias chegadas de fresco – os “parvenus”, extraordinários em Marivaux -, têm imposto as suas referências de “mau gosto” como bandeira visível da sua própria ascensão vencedora exibida como gosto dominante. A diversidade, neste aspecto, não passa de um simulacro e o”mau gosto”, enquanto expressão de um poder da quantidade, é de facto, esmagador.
Nestas coisas, o respeito das tais minorias revela-se no plano de uma clara inveja social, confundindo-se muitas vezes aquilo que é de ordem estética com aquilo que é de ordem elitista. Não há “bronco” nenhum que não apelide de elitista, não aquilo de que não gosta porque formatado pelo tal “mau gosto” que o impede de gostar – no plano do juízo funciona na mesma zona em que se pode pensar o estético, o gostar não gostar dependente da comunicação imediata – mas aquilo que ele entende que, não percebendo, não passa de algo elitista que a tal democracia igualitária tem de liquidar para que, nivelando tudo pela tal lei do tudo nivelado pelo mesmo, tenhamos uma ordem democrática do gosto, um gosto comandado pelas massas médias e remediadas. Este pratica-se contra as veleidades aristocráticas do estético, identificadas com as tais elites que são perniciosas e a que se associam os desgraçados dos artistas, na realidade, mais artesãos que criaturas mundanas – artesãos do corpo e cabeça, das linguagens do enigmático. A ideia de “uma arte elitista para todos” não lhes passa pela cabeça.
E o problema é que o poder subscreve este ponto de vista não assumindo desígnios estéticos na ordem pública – o que é tido como ingerência, como se dar a ler Camões a sério fosse uma imposição e não um modo de combater a ignorância e de permitir a fruição da beleza. Do mesmo modo que descrimina numa política a importância da ciência como factor de desenvolvimento libertador – que não o é em si, pelo contrário, o que justamente implica a marca orientadora de uma política – é imprescindível discriminar, numa política, a cultura como forma de fomentar as actividades estéticas da criação artística, que não têm um quadro de rendibilidade imediato pois não são realizadas para nenhum mercado, mas são actividades humanas essenciais, aquelas que no fundo identificam no ser os seus objectivos humanos – ainda recentemente José Gil falou desta dimensão ontológica da criação artística.
Será que isto não entra pelos olhos dentro? Mesmo a actividade artística regular, como a dos teatros, está mais próxima daquilo que enquanto actividade estética caracteriza Os Lusíadas do que daquilo que vai no design dos móveis da Ikea. Não há relação entre as actividades do gosto formatado e a invenção artística. D. Quixote, por muito que o formatem e concentrem e imitem e reduzam a sigla e sinopse, não dispensa a leitura, essa actividade sem rendibilidade imediata – exemplo radical é o romance de Joyce agora editado, Finnegans Wake (15 anos levou Joyce a escrever o romance inacabado e agora mais de trinta levou o estudioso que fixou o texto para uma leitura possível).
Nada compro nem vendo nas horas perdidas da leitura, perco tempo e dinheiro – a leitura é tão “inútil” quanto a criação e tem os mesmos vícios. Mas ganho algo, ganho até inteligência criativa – ela anda aí a tal artificial, mas não funciona sem mão – aplicável a lógicas de exercício laboral dedicadas à economia. Mas estas não são nem de consequência directa, nem de medida imediata, não são mensuráveis. Será que isto não se entende? Não se entende que é de outra esfera e que é com esta esfera que uma política cultural do artístico se tem de entender? Uma política cultural é uma política da estruturação da criação artística e é uma política da leitura, das capacidades de ler a complexidade actual das linguagens. E é também uma política da relação umbilical das duas coisas.
Fernando Mora Ramos