Doutor Nefelibata
Não sei se por magia, se por perseverança, há tempos que num dos limpa para-brisas do meu velho carro encontro publicidade a um congénere do Professor Karamba. Tanto Karamba, como Mamadu, Bambo ou Salimo, entre tantos outros, se intitulam professores. Também há deles que são mestres, tipo Bangal, ou doutores, como Sidia. Em que se formaram estes professores, mestres, doutores? Em ciências ocultas, leituras da sorte, feitiços brancos e negros, cartomancia, astrologia, tarot, búzios, cenas. Os resultados são garantidos e, por vezes, com infalíveis planificações. Em seis dias, pode o utente ver-se livre dos vícios e das pessoas tóxicas, de insucessos e depressões, de créditos mal parados e de maus-olhados (mais ou menos a mesma coisa), de impotência sexual e de todo o tipo de tormentos. Tenho dúvidas, mas é provável que cada um destes doutores saiba uma qualquer magia para nos libertar de uma vez por todas da psicose doutoral que medra no país.
Como sabeis, no passado dia 9 de Fevereiro foi publicada em Diário da República uma portaria com o intuito de regular licenciaturas em medicina tradicional chinesa. De pronto, o pessoal da ciência se manifestou contra. É relevante que não metamos tudo no mesmo saco. Por exemplo, a licenciatura de Relvas pode, em matéria de conhecimentos de facto, estar ao nível da formação de um doutor Sidia. Não duvido que a tese de mestrado de Barreiras Duarte possa ser comparável às teses que garantiram grau de mestre a Bangal. E se Passos Coelho pode ser equiparado a professor catedrático, por que não chamar professor a Mamadu? Cada um deles tem direito aos seus domínios esotéricos. É vê-los na televisão e ouvi-los nas rádios e lê-los nos jornais que facilmente se entenderá ser mais ou menos a mesma a raiz da sabedoria. O problema está na legitimação em Diário da República de práticas que carecem de prova conforme a metodologia científica por cá convencionada.
Devo confessar que já consultei naturopatas e homeopatas. Nada me move contra os poderes do chá e das agulhas. Mas também é verdade que nunca esperei encontrar pendurado nas paredes dos consultórios respectivos diplomas garantindo graus de cientificidade a práticas que nada têm de científico. Nem é preciso que tenham. Só é preciso que aliviem, tal como um agradável aroma a incenso alivia uma cabeça stressada ao final do dia. Seria desacertado ler-se “O Livro do Hygge” como quem lê um tratado de psicologia. Ho’oponopono não é bem a mesma coisa que neurologia. Já não tenho certezas de que exista qualquer diferença entre a tese de mestrado de Barreiras Duarte e o “Livro de São Cipriano”, mas essa é outra matéria. Marcelo não vetou a lei que permitiria a um engenheiro civil assinar um projecto de arquitectura? Cada macaco no seu galho, como se costuma dizer. Terrível será que comecemos a nivelar tudo por tão baixo que, qualquer dia, não teremos onde assentar os pés. Passaremos a ser uma sociedade de nefelibatas com grau de doutor para inglês ver.
No meu imaginário, este drama começou em 1985 – ano em que assisti à elevação a cidade da vila onde nasci. Ainda hoje olho para Rio Maior como vila, não consigo ver ali uma cidade. Tal como não consigo ver um professor em Mamadu. Que cidade pode dar-se ao luxo de prescindir do património de um dos seus maiores valores? Não me admira que a vila de Óbidos venha a acolher o património de Ruy Belo como a cidade de Rio Maior não sabe nem quer acolher. Admirar-me-ia mais que quem sempre mostrou estar ao nível de Karamba pudesse agora, por artes mágicas, elevar-se um pouco acima do charlatanismo.
Henrique Fialho
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