Aproprio-me do título com que Maria Gabriela Llansol celebrou Jade, cão nascido «sobre as bagas purpúreas dos medronhos». Belíssimo texto breve. Durante anos, coleccionei obsessivamente textos sobre cães. Conhecem o “Requiem Por Um Cão”, de Ruy Belo? E aquele poema de Armando Silva Carvalho, “Eu E Os Cães”? Há um texto agora terrível de Agustina Bessa-Luís, sobre o Boneco, «caniche pêlo de arame, daí a má índole, asselvajada», «o cão mais desleal do mundo», excepto para a dona. Terrível por ter sido abatido, ou, como agora se diz, eutanasiado. Konrad Lorenz, que não só amou cães, como os estudou, escreveu em “E o Homem Encontrou o Cão…” que os caniche são a raça de cães com a maior capacidade de entender e de se fazerem entender. A generalização é tocante, sobretudo vinda de alguém que preferia cães de grande porte. Não duvido dela. São vários os caniche que fazem parte da minha vida.
Mas a minha história canina começou com o Pax, rafeiro incrivelmente esperto. Na primeira secção das “Estórias Domésticas”, livro que publiquei em 2006, ele surge no texto 28. Foi atropelado na EN1, quando me perseguia a caminho de um lugar que nos trouxe à morte. Vi-o suportar três pancadas fatais, arrastar-se estoicamente até meus pés, perecer com olhos dormentes à beira de qualquer coisa que já não era bem eu. Criança ainda, fiquei em estado catatónico durante horas. Não me recordo de haver chorado. Berry foi o substituto a quem coube a missão de fazer esquecer o inesquecível. Há traumas que nos perseguem para a vida. A perda de um cão pode ser um deles. Berry era estouvado e palerma, mas agradável. Até ter apanhado uma qualquer doença que o tornou agressivo. Depois de me ter mordido, os meus pais resolveram dá-lo a um padeiro que era caçador. Disseram-me que o davam para a caça, mas eu percebi que estavam a dá-lo para ser caçado. Chorei desalmadamente, como nunca mais consegui chorar. E que saudades sinto eu de chorar assim!
Vem isto a propósito de quê? Perdi recentemente um companheiro de 18 anos, chamava-se Basquiat. Toda a gente cá em casa o amava. Posso esperar, como Adalberto Alves no poema “Em Memória do Meu Cão”, que um dia o Senhor me conceda entrar no Além dos cães para afagá-lo mais uma vez. Mas não sou crente, e ao Senhor jamais perdoarei essa falha inacreditável de ter atribuído ao cão uma longevidade mais curta do que a nossa. Resta-me a memória. À dor da perda junta-se a angústia do envelhecimento. Assistir à degenerescência de um animal que nos é querido oferece-nos um cenário possível do que nos aguarda na velhice. Perdem-se os dentes, a visão, a audição, os músculos ficam débeis, a demência toma conta daquilo que nos fazia crer existir sentido neste mundo que não fosse o de andar para aqui pela trela da servidão.
Embora tenha vivido num tempo em que não se discutia sequer a possibilidade de um quadrúpede entrar num restaurante, o Basquiat entrou. Foi em Reguengos, numa tarde de tanto calor que seria criminoso deixar o bicho entregue à sua sorte dentro de um automóvel. A lei é patética, digo eu, agradecendo a empatia dos alentejanos que naquele dia nos desenrascaram. Mais patética é a exploração do sofrimento animal. No dia da morte, uma mensagem da minha mulher a comprovar o absurdo deste mundo: «Como faço com o corpo? Cremação conjunta, 25 euros e fica aqui. Também posso levar o corpo e enterrar. Cremação individual, 300 euros e depois recebemos as cinzas em casa». Abstenho-me de comentar, tal é o nojo. Cavei o buraco, a Ana embrulhou o nosso velho companheiro num paninho, deixei-lhe uma fotografia da família entre as patas, para que nos abrace na eternidade, numa bela história de amor.
Henrique Fialho
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