Logo a abrir o “Diário I”, primeiro volume de 16, Miguel Torga tem algumas entradas escritas em Caldas da Rainha. Uma delas, datada de 11 de Setembro de 1939, é um pequeno poema intitulado “Paz”. Mas não é do poema que quero falar. Recuo breves dias no diário, e dou com uma entrada na sala de espera dos tratamentos termais. Voz ao poeta: «É espantosa a tendência do português para a promiscuidade! Chega a umas termas, senta-se, volta-se para o vizinho da direita e, sem dizer água-vai, conta-lhe a vida». Isto acontece-me muito, ter quem me conte a vida. Fico no lugar de espera, estático e estupefacto, a ouvir quem se serve da minha passividade como se eu fosse padre ou psicólogo. Não me queixo. De vez em quando, dou o tempo por aproveitado com uma história que surde dos estilhaços de vidas alheias. Misturo-a com especiarias da imaginação e dou por cozinhado o ímpeto de vingança. Nunca desesperei, como Torga, com as confissões de uma “viúva asmática”. Aproveito-as como quem respiga matéria-prima para o trabalho nas obras.
Há dias, precisamente ali para os lados onde Torga terá fugido desvairado da sua “viúva asmática”, encontrei eu a minha (que não sei se era viúva, nem se tinha asma). Estávamos ambos sentados onde se sentou o público que quis assistir à mais recente produção do Teatro da Rainha: “A Paz”, de Aristófanes. E foram muitos os que quiseram, para bem geral da freguesia. A minha “viúva asmática”, sentada na fila de trás, começou por lamentar o mau tempo, augurando trovoada quando eu já só ouvia o bombo de serviço anunciar o início do espectáculo. Depois, enquanto o público subia escadaria, ouvi-a comentar: “são tantas as peneiras que isto ainda levanta voo”. Para os lados de onde uma semana antes andavam cavalos, escutei eu um pavão pupilar. Parecia efeito especial. Esta mulher devia fazer parte do espectáculo, dizia eu de mim para comigo quando vi entrar um coro com avantajados falos à mostra. “Isto só nas Caldas”, comentou a “viúva asmática”. Olhe que não, olhe que não, respondi-lhe. Na Grécia antiga já era assim, nomeadamente nas festas dionisíacas de onde provém esta sátira do grande mestre da comédia ática. Suba o pano.
“A Paz” é exemplo de como a comédia pode atravessar milénios sem perder sentido, um sentido que transcende o enraizamento histórico apontando dedo às contradições universais da humanidade. A despeito da indumentária fálica, das danças licenciosas, dos ataques mais ou menos ofensivos ao público, das paródias escatológicas e das cenas triviais de efeito típico, há uma dimensão de crítica na comédia que lhe oferece uma utilidade censória favorável à pedagogia de um povo. Foi assim outrora em Atenas, é assim agora em Caldas da Rainha. Quem tenha visto a peça talvez não tenha reparado, ou talvez eu tenha reparado em coisas que não existem. Mas não pode hoje ser aquela sátira uma crítica radical à sociedade de espectáculo que nos vem consumindo? No final, não ficou a paz na penumbra enquanto o povo se divertia com bodas e orgias? “A Paz” antecipa o cenário de pão e circo que os romanos nos ofereceram e nós vamos repisando ad nauseam, impotentes face a populistas, demagogos, ideólogos de muros que seriam vergonhosos se sobrasse vergonha no mundo.
Esta adaptação envolveu uma comunidade, actores profissionais misturados com estudantes, jovens amadoríssimos de braço dado com alunos da Universidade Sénior. Chamar-lhe serviço público é pouco. Isto é um bem maior em dose dupla. Estreitada pela cultura, a comunidade pode redescobrir-se contra a vontade dos vendedores de oráculos que pululam pelo país. Povo e deuses diante de um espelho, rindo dos seus tiques, defeitos, equívocos, reconhecendo-se para que possam aperfeiçoar-se. Bem hajam.
Henrique Fialho