Intervalo Doloroso – Irás ao Paço

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Gazeta das Caldas
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De vez em quando pedem-me poemas, poemas escritos por outros que sirvam de epígrafe em trabalhos, relatórios, teses. Conheces algum poema sobre violência doméstica? E lá encontro um poema sobre violência doméstica. E sobre assédio no trabalho? Arranja-se. Estou a escrever uma tese sobre a reprodução de caracóis, conheces algum poema que sirva para epígrafe? O Woody Guthrie dizia que qualquer assunto podia servir de tema para uma canção, mas não estou a ver quanto a reprodução de moluscos gastrópedes possa ter de inspirador. Esta cisma do poema em epígrafe tem muito que se lhe diga. Recordar-se-ão da mulher de um conhecido político a citar Alexandre O’Neill durante uma acção de campanha. Fica sempre bem, citar poetas, para mais num país que celebra a sua identidade soprando velas a um dos maiores.
O poema-epígrafe tem as suas variantes. À laia de síntese, falamos da função decorativa da arte. Isto de ser epígrafe é como ter pins para troca, intercâmbio cultural capaz de reduzir o essencial a acessório. Gazeta das Caldas, 23 de Fevereiro, página 9: o presidente da Câmara de Caldas da Rainha oferece ao presidente da Câmara de Le Raincy uma serigrafia de Ferreira da Silva. A fotografia da praxe ilustra o momento, fotografia típica, vulgar, comum, tão inofensiva como o poema-epígrafe. Imaginemos os dois a passearem para os lados dos “Jardins da Água”, Tinta a tentar explicar a relevância do grafito sobreposto à obra do Mestre, que o parque de estacionamento ao largo foi uma liberdade poética, modo contemporâneo de dar continuidade à instalação, introduzindo entre a “Mãe d’Água” e o Chafariz das Cinco Bicas elementos acutilantes, os veículos. E então o senhor Genestier perguntaria pela água, ao que o senhor Tinta lembraria que a seca extrema atingiu 75,2% do território continental.

Outra variante do mesmo problema chega-nos da Direcção Regional da Cultura do Centro. Celeste Amaro, responsável pelo organismo, mostrou-se satisfeitíssima com uma companhia de teatro de Leiria que não a “incomoda” com pedidos de apoio. É de facto um aborrecimento, ter de dar resposta a candidaturas que consigam responder às exigências kafkianas de plataformas enrodilhadas em “burrocracias” sem fim. O elogio da auto-suficiência em matéria de artes pode ser compreensível, tal como o poema de Sophia “Camões e a Tença”: «Irás ao Paço irás pacientemente / Pois não te pedem canto mas paciência // Este país te mata lentamente». Afinal é tudo uma questão de prioridades, deixa-se o artista viver do ar, faz-se o download, imprime-se a República ideal: sem poetas, sem farsantes, apenas tecnocratas e vendedores de telemóveis, amadores sem amantes, trolhas, tocadores de rabeca a comer de esmola a cultural oficial e oficiante. Não incomoda nada, é um descanso para a alma.
Está-se mesmo a ver onde isto vai dar. Numa mesma semana ficámos a saber do fecho de mais duas livrarias exemplares, uma em Lisboa, outra em Coimbra. E mais uma editora, lá para as bandas do Porto. Por que será? Só encontro uma razão, o facto de há muito tempo andarem a fazer da cultura neste país uma epígrafe. Não se formam públicos, deformam-se leitores, deixa-se o património ao abandono, descaracterizam-se os centros históricos cedendo à especulação imobiliária, que não se incomoda nada com a cultura, semeia-se a superficialidade para se colher estupidez. Reza-se para que o artista não bata à porta. Burros, mas felizes, seremos todos epígrafe de nós mesmos. Se julgam que estou a ser trágico, aguardem as cenas dos próximos capítulos. Tal como Camões aguardou pacientemente pela tença.

Henrique Fialho
fialho.henrique@gmail.com

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