Intervalo Doloroso

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Gazeta das Caldas

Uma praga social

Passei a infância num bairro relativamente pobre de Rio Maior. O ambiente era acolhedor, interrompido apenas por ocasionais tragédias domésticas. Tinha por vizinhos um casal com dois filhos. De vez em quando, ouviam-se gritos vindos do lado de lá do muro. A mulher que a acudissem, os filhos, dois rapazes, choravam. Eu tentava encontrar explicação para a gritaria, mas os rostos encolhidos de meus pais explicavam-me que nada havia para entender. Entre marido e mulher era melhor não meter a colher, assim ensinava a sabedoria popular. Quem aprecie sabedoria popular, meta os olhos neste saber. É senso que nunca me pareceu recomendável, como a gritaria o comprovava.
Certo dia, o queixume foi diferente. Não se ouvia a mulher, apenas os dois rapazes. Muito aquelas costas tinham aguentado o couro dos cintos. Mas agora era outro o choro, não de dor, nem de súplica. Uma espécie de oração. O homem da casa bebera veneno, contorcia-se com dores, os rapazes choravam as dores do pai, a mãe clamou pela vizinhança, que só se apresentou quando a porta, escancarada, permitiu antever o cenário de morte. O pai havia mandado a vida de inferno para os infernos. Queria saber se a mulher ainda o amava, se faria qualquer coisa para o salvar. Nem ela nem os rapazes foram a tempo. O pai morreu. Alguns anos passados, um dos rapazes juntou-se-lhe. Foi encontrado numa valeta com uma seringa espetada num braço.
Emigrado na capital, voltei a constatar a desolação destes infernos domésticos. Agora com outra percepção dos acontecimentos, mas a mesma inércia perante os factos. Que fazer? Que dizer? Como agir? Entre marido e mulher… Há tempos, esta angústia de novo a subir à garganta. As lojas tinham acabado de encerrar. Vozeria e agitação no adro. Tentei perceber o que se passava. Uma rapariga, não maior de 18, sangrava do nariz. O namorado dera-lhe uma cabeçada, disseram-me. O que fazer? O que dizer? Como agir? Alguém telefonou para a polícia, perguntei. Responderam-me que sim. Regressei ao trabalho, já não era comigo. Passados dois dias, voltei a vê-los por ali, os namorados, ela com um penso no nariz, ele com o mesmo sorriso desdentado de sempre.
Mais de 450 mulheres foram assassinadas nos últimos 12 anos em Portugal, vítimas de violência doméstica. Muitas já tinham apresentado queixa às autoridades. Caldas da Rainha não foi excepção. A notícia, do dia em que completei 43 anos de vida, diz que homem matou mulher e ficou ferido com gravidade, tinham três filhos menores. O remate é dos mais comuns: «O crime surpreendeu os vizinhos, já que nunca se aperceberam de discussões entre o casal.» É quase sempre assim, os vizinhos não se apercebem, não ouvem, são invariavelmente apanhados de surpresa. Alguns comentam em surdina, outros calam, no final é tudo boa gente metida com a sua própria vida.

Isto é uma praga social contra a qual podemos e devemos fazer muito mais do que manda o ditado. Porque, feitas as contas, somos todos culpados de tudo e de todos. Dizia-o Dostoiévski, que nunca foi muito popular. Espanto meu que no país das 450 mártires, mulheres aconselhadas pelo matrimónio a obedecerem a seus maridos, se entretenha uma Arquidiocese com os recasamentos de cristãos divorciados, procurando forma de lhes admitir “a possibilidade de acesso aos sacramentos”. Nada disto está directamente ligado, embora não seja difícil encontrar aquele ponto onde a causa gera o efeito. É só procurar um bocadinho. E mais uma vez lá está a mulher no lugar da subordinação. Longo será o caminho do discernimento.
fialho.henrique@gmail.com