Joana Beato Ribeiro
IHC – NOVA FCSH – UÉ / IN2PAST
PH – Grupo de Estudos
Esta é a madrugada que eu esperava… O poema de Sophia de Mello Breyner (1977) resume a longa espera pela Liberdade alcançada no dia 25 de Abril de 1974. Nas próximas linhas procurar-se-á, numa abordagem seletiva, a partir da Gazeta das Caldas caracterizar um pouco do que ocorreu na cidade desse dia em diante e a memória dos caldenses, preservada ao longo destes anos de comemorações do “golpe militar sui generis”, para utilizar a expressão do historiador Manuel Loff. É importante ressalvar que lhes falta um pouco da “autoridade do vivido” (Miguel Cardina, O atrito da memória, 2023): é essa que é preciso preservar, com memórias e documentos que possam fazer a História.
Nos dias 27, 29 de abril e 1 de maio de 1974 “ordeiras jornadas de esfusiante alegria e de entusiasmo” deram apoio popular ao Movimento das Forças Armadas e aos militares do RI5, enquanto a “defunta-gazeta-fascista” temia a “intranquilidade”. Só alguns dias depois a Revolução chegou à Gazeta e o novo diretor, Adérito Amora, declarou “imperativo” o apoio à Junta de Salvação Nacional, tornando o jornal “num arauto do povo.” Uma nova Gazeta que não satisfez todos, sendo igualmente vista como um “jornal politiqueiro de vincada facção comunista”. Aí encontrava o leitor notícias sobre o país e o seu governo, as reações ou as negociações para a independência das antigas colónias – neste caso através dos artigos de António Avelãs ou relativos à ação do Conjunto Cénico Caldense, com destaque para a representação d’O canto do Papão Lusitano de Peter Weiss (citações retiradas da Gazeta das Caldas) “O mito do heroísmo jovem” como lhe chamou João B. Serra (2014), também se reconhece neste jornal, sendo de e para os jovens criados o Centro de Estudos de Alfabetização e Cultura Popular ou o Movimento Associativo Caldense para coordenar as atividades das coletividades. “Trabalho e serenidade consolidam a liberdade conquistada pelo País”, frase adotada pela Gazeta, que iniciou um programa de educação política em maio. “Agora que há tantos partidos é mais difícil encontrar um”, as caricaturas de Diógenes testemunharam o renascimento da vida partidária nacional e local. Nas freguesias as opiniões dividiam-se entre o fascismo que se “desintegrava” e o “sonho” da Revolução. “Voto – uma arma do povo”, outra frase repetida na Gazeta, num momento em que se aguardava a constituição da Comissão Administrativa local e as eleições.
“Quando me interrogo, não quero sequer beliscar a importância desse momento e do significado que lhe é dado. É-me de todo indiferente.” (Álvaro Laborinho Lúcio, As sombras de uma azinheira, 2023). Catarina, nascida a 25 de Abril, questiona-se, nesta obra, sobre a imagem e a utilidade desse dia. Questões pertinentes, cujas respostas serão condicionadas pela memória (construída) da ditadura, do período pós-revolucionário e das reações, assim como pela vivência dos portugueses até hoje. Em 2015, Manuel Loff e Filipe Piedade demonstraram como a “identidade histórica” de uma sociedade “é submetida a usos políticos da memória coletiva”. No caso português, as comemorações têm gerado “controvérsias”, que se relacionam com “os processos de reconstrução sociopolítica da memória da ditadura”, indissociável do seu término, passando pela “libertação da memória da opressão” e seguindo para uma “polarização inevitável” que transformou o “passado em campo de batalha política e cultural”.
A Gazeta procurou assinalar a passagem do 25 de Abril com notícias diversificadas – reunindo alguns testemunhos da resistência antifascista e da Revolução -, mas também dando conta das iniciativas locais e do seu significado. A participação dos jovens foi uma preocupação comum do jornal e das comissões organizadoras (que, salvo raras exceções, partiam da(s) Junta(s) de Freguesia(s) urbana(s)). Destaca-se, em 1999, a exposição e livro 25 de Abril, 25 Anos, 25 Jovens – Retratos da Democracia. Em 1979, várias instituições prepararam as comemorações, considerando a Gazeta que a Câmara “cada vez menos” se envolvia no processo. Comummente, o 25 de Abril foi assinalado localmente com atividades desportivas e, mais pontualmente, musicais e culturais; acompanhadas (quase sempre) de sessões solenes, quase protocolares e, por vezes, revestidas de pouco significado. A Praça da República, o Quartel (depois Escola) ou os Paços do Concelho foram os lugares selecionados para estes momentos. E, entre as iniciativas culturais, devem destacar-se a participação da Casa da Cultura e da Biblioteca.
Nos 15 anos do 25 de Abril, em 1989, encontra-se, através da Gazeta, o tal “campo de batalha” da memória, ao ler os discursos dos vários representantes locais de partidos políticos. Em 1994, a situação agudizou-se e, ainda antes das comemorações, numa sessão em Peniche alertou-se para a crescente reescrita da “História branqueando o Fascismo, e enegrecendo Abril”. Ideia que pairaria sobre as iniciativas dos 20 anos da Revolução, especialmente quando foi expressa por Ana Maria Rebelo (CDU). Nessa mesma sessão solene, o presidente da Câmara, Fernando Costa, confiando na eternidade da Democracia, destacou o papel de 25 de Novembro de 1975. Foi, no entanto, Mário Soares, que ao condecorar o RI5 com a Ordem da Liberdade, revestiu a cidade de um novo significado por considerar o golpe de 16 de Março “revolta percursora e anunciadora do 25 de Abril”.
Em 2004, nos 30 anos da Revolução foi polémico o lema “Abril é evolução”. Alguns partidos políticos organizaram iniciativas, mas foi a presença de Jorge Sampaio que deu expressão às comemorações locais. Nos 40 anos do 25 de Abril, em 2014, as comemorações foram organizadas pela Assembleia Municipal. Finalmente, a Gazeta mostrou expectativa com o programa que “prometia”, integrando uma sessão solene com a participação de João B. Serra, em que foi traçada “a evolução de Portugal nos últimos 40 anos”, incluindo “uma retrospectiva do fim da ditadura” até ao “mágico” 25 de Abril. Ainda nesse ano, despoletou uma nova polémica em torno do regresso da estátua do marechal Carmona (de João Fragoso) à (hoje) Praça 25 de Abril, de onde fora retirada depois da Revolução. Ficou decido que a estátua passaria para um espaço museológico local, pelo que, as adaptações do espaço público pós-25 de Abril sucederam, sem retorno, mas o episódio é elucidativo sobre os caminhos sinuosos da memória. ■
