“Lá”

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Cristina Soares
Consultora de Comunicação de Ciência

Há 48 anos, num dia quinze de Agosto, os meus pais e os meus irmãos aterraram na Portela, retornados de Moçambique. Os meus pais e os meus irmãos, porque eu, na altura apenas com ano e meio, chegava pela primeira vez ao país que me deu a nacionalidade. Há quarenta e oito anos eu chegava a Portugal, sem nunca ter retornado da terra onde nasci, à beira do Índico, que tantas vezes nunca teve nome entre as conversas de famílias e amigos chegados, tornando-se um sítio atrás da memória, a que chamavam apenas “lá”. Era como se a ausência do nome a trouxesse para mais perto, para uma frágil possibilidade que se esboroaria, qual feitiço, se lhe pronunciassem o nome.

– E tu, lembras-te de lá? – Perguntavam-me outras pessoas que lá tinham vivido.

Eu dizia que não, vim de lá muito pequena, e via-lhes uma certa de desilusão no rosto, que pena, a tua terra era muito bonita. Um dia, tens de lá voltar. E eu dizia-lhes que sim, que é o que as pessoas querem sempre ouvir, mas como explicar-lhes que, se acaso eu voltasse, apenas voltaria a memórias que não eram minhas? Como dizer-lhes que a minha terra, o meu primeiro chão, não encontrava lugar dentro de mim, só nas histórias dos meus pais, as quais pedi para repetir vezes sem fim, talvez pensando que se um dia as soubesse de cor, então, seriam realmente minhas, e dentro de uma pasta azul, em forma de envelope, onde se guardavam todas as fotografias de “lá”? Como contar-lhes as horas e horas que passei a observar aquelas fotos, procurando qualquer coisa de onde eu pudesse dizer, eu sou dali, isto é onde pertenço?

O meu pai a contar-me, todos os verões de “cá”, que o pôr-do-sol de “lá” era poderoso, um feitiço, escuta-me, dizia, ficava o céu todo vermelho num instante e eu ouvia-o imaginando mil céus vermelhos que nunca vi, que nunca foram os meus. Escuta-me, disse-me, da última vez que foi a minha casa, ao sair, num fim de tarde surpreendentemente quente para aquele princípio de Outono, apontou-me o céu, parado à soleira da minha porta e disse-me, olha, era quase assim que ficava o céu da tua terra. Eu olhei o horizonte, no mesmo exercício que fazia em criança, em busca de uma memória que não tinha, disse, com a firmeza com que fazemos todas as promessas:

– Devia ser bonito, pai. Um dia volto lá.

Ele sorriu, bateu-me ao de leve no braço e disse baixinho.

– Volta, pois.