UM LIVRO POR SEMANA / 512 / José do Carmo Francisco – «Levante-se o réu outra vez» de Rui Cardoso Martins

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Notícias das Caldas
«Levante-se o réu outra vez» de Rui Cardoso Martins | D.R.

Ao longo de 17 anos Rui Cardoso Martins (n.1967) escreveu crónicas no jornal «Público» sobre as audiências de julgamento em que esteve presente no Palácio da Justiça de Lisboa. O nome é irónico pois muitas vezes o maior inimigo da Justiça é o Direito. O autor tem dois antepassados de peso na área da crónica urbana: Manuel Geraldo (Salvada) e Orlando Neves (Portalegre). O primeiro com «Um juiz no alto do Parque», o segundo com o livro «Lisboa em crónica» (1968) e a antologia «Palhas alhas» (2000).

Mais do que temas do tribunal, estas crónicas constituem uma «antropologia das subculturas urbanas» e o seu ponto de partida é uma reflexão sobre o passado, num país onde a justiça é sempre lenta: «Qual é o peso exacto do nosso passado? Em quanto nos fica enterrá-lo para sempre e quanto custa chamá-lo em caso de necessidade? Para dominar o passado, usa-se a cabeça e o coração em conjunto ou só um deles e, já agora, qual? Dão cursos disso? Em caso afirmativo será acessíveis à maioria das bolsas? E o que fazer quando, apesar das maravilhas que o tempo, esse grande escultor, vai fazendo às nossas piores lágrimas, o passado é tão poderoso que trepa pela perna do tempo acima e regressa sem aviso, para nos fazer mal e, porventura, nos estragar a noite?»
A morte é um dos factores, seja individual («Foi deste modo que morreu Vera, uma criança de quatro anos») seja colectiva: «Em Verdun, a linha da frente não variou mais de um quilómetro em dez meses. O chão ficou tão poluído de obuses e gases que a vegetação não cresceu durante anos. Morreram cerca de 700 mil homens para nada. Ou melhor, morreram para morrerem. Quase todos se fundiram com a terra e nunca foram recuperados.»
Outras vezes alguém sobrevive mas não quer voltar ao lugar: «Deixei de ir ao local do acidente-. O filho gostava daquele parque infantil, começara a crescer lá. – Já não vamos. O miúdo lembra-se sempre.» Outras vezes alguém vende roupas na rua («logótipos falsificados, costuras ranhosas, golas torcidas, tecidos macacos, cores fatelas, baínhas disformes»)ou então vende ouro: «O ouro é imortal e nós qualquer dia acabamos.»
O livro de 343 páginas confirma o prefácio de António Lobo Antunes: «A primeira vez que ouvi falar do nome de Rui Cardoso Martins foi pela boca do escritor José Cardoso Pires, o meu melhor amigo. O Zé sempre foi um homem de poucas palavras e de muito poucos elogios.» À pergunta óbvia «Escreve o quê, esse?» José Cardoso Pires respondeu: «Coisas acerca de tribunais, tão bem cozinhadas que nem se dá pelo fogão aceso.» Ou isso, dizemos nós, os leitores felizes destas crónicas onde se mistura de modo hábil o sangue pisado da vida e o estilo da escrita. Sempre com o cuidado de não cair nem no simples testemunho nem no puro exercício.
(Editora: Tinta de China, Prefácio: António Lobo Antunes, Capa: V. Tavares)