«Livre do desassossego» de José Correia Tavares

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Image-cópiaO ponto de partida deste livro de José Correia Tavares (n.1938) é o lugar do poema, um lugar determinado: «Aqui ou aonde chego / Eu vivo enfim, hora a hora / Livre do desassossego / Como nunca fui outrora». Ora se existe um «Livro do Desassossego» de Fernando Pessoa, este é, por oposição, um «Livre do desassossego» não porque não esteja nele inscrito um desassossego mas porque ele é de outra ordem e nada tem em comum com o poeta dos heterónimos. O seu princípio é uma memória que se liga ao presente: «Não me vesti de palhaço / Miúdo, no Carnaval / É isso agora que faço / Neste circo nacional»
Ora o circo nacional é o País em quatro versos. Seja nos «lares» («Mas onde queres que eu ponha / Um pouco de dignidade / Quando aqui não há vergonha / Sequer na terceira idade?») seja na vida pública («Sobes todos os degraus / Neste país de ladrões / Começaste em vinte paus / Até chegar aos milhões») seja na memória das privações («Quando uma sardinha assada / Era conduto de três / Passavam sem dar por nada / Feudais na sua altivez») seja ainda na história marítima que também é trágica no plural («Este povo aventureiro / Que descobriu tantas ilhas / Vai de Lisboa ao Barreiro / Às vezes, só a Cacilhas») e no singular: «Num barco, de camuflado / Quando dormia o país / Fui com outros arrancado / À terra, pela raiz».
Quem olha para o circo nacional é o Poeta no seu ofício: «Com os altares da sé / Cheios de pó e caliça / Sou um padre já sem fé / Mesmo assim dizendo missa». Ofício cercado de silêncio e sujeito às suas emboscadas: «Recenseaste cem mil / Poetas, não fui citado / À minha morte civil / Também tu tens ajudado.» Mas também proclamado todas as manhãs: «Escrevo as quadras que canto / Pelo amor, contra a mentira / Várias quando me levanto / Rimo como quem respira». Portugal nem é um país de poetas nem de brandos costumes: «Os ratos na sacristia / Todos os dias do ano / Não ligam à homilia / Quanto mais ao Vaticano».
Mas fica sempre uma esperança nas últimas quadras do livro («Qual adeus, qual despedida?/ Abram lá essa janela! / Sofri muito a minha vida / E mesmo assim gosto dela») ligando o passado do futuro: «Tentei voltar ao passado / Dei de caras com um muro / No qual estava gravado / O caminho do futuro»
(Editora: Húmus, Capa: António Pedro sobre o atlas Ortelius – século XVI, Prefácio: Mário de Carvalho, Apoio: Câmara Municipal de Castelo Branco)