Foi há muitos anos, certamente muito poucos já se lembrarão.
Em 19 de Junho de 1950 um comboio especial arrancava da estação do Rossio rumo à estação de Madrid-Delícias onde chegaria já noite fechada. Levava consigo o Batalhão de Alunos do Colégio Militar, acompanhado da Direcção deste estabelecimento de ensino e de numerosos professores e instrutores que, na sua máxima força, iria fazer uma estada de seis dias na capital espanhola numa inédita e nunca mais repetida visita protocolar.
Na bagagem, além da juventude impaciente e da vontade de bem-fazer que animava aquelas três centenas de jovens, havia uma colecção heterogénea de actividades que tinham sido minuciosa e repetidamente ensaiadas ao longo de todo o ano lectivo e que se iriam desdobrar durante essa estada. E entre elas, logo no primeiro dia, estava uma apresentação no enorme Teatro Madrid, com a sua lotação de duas mil pessoas completamente esgotada, onde, além de várias intervenções do Orfeão Colegial, se iriam recitar três pequenas peças teatrais – um diálogo dito Colégio Militar, da autoria do coronel Carlos Chaby, entre um antigo e um actual aluno, evocando, em verso dodecassílabo, as principais efemérides da instituição, o Monologo del Vaquero, peça fundamental do nosso teatro que celebrou o nascimento do príncipe D. João (futuro D. João III), de Gil Vicente, e o entremez Todo o Mundo e Ninguém, do Auto da Lusitânia, do mesmo autor. Tive o privilégio de pertencer a este pequeno e audacioso grupo de actores juvenis, fazendo de “velho” antigo aluno, papel que, na edição original da peça, fora desempenhada pelo consagrado Raul de Carvalho, e sabia que a tarefa no Teatro Madrid ia ser muito mais difícil do que fora no Teatro D. Maria II – a dimensão do espaço e a circunstância da audiência ser predominantemente estrangeira eram duas contrariedades de peso. Mas a experiência que inúmeros ensaios e as duas representações anteriores nos tinham conferido e um atrevimento que só se tem naquelas idades, ajudaram a compor um desempenho, talvez mais gritado e pausado que em Lisboa, que julgo, todavia, não ter sofrido quebra de rigor.
Mas o desempenho de Monroy Garcia, no Monologo del Vaquero, excedeu todas as expectativas. Interpretando com fidelidade e convicção a entrada tumultuosa de Gil Vicente na câmara da Rainha, o Vaqueiro declamou com vigor inesperado e num castelhano irrepreensível, as primeiras estrofes do Auto:
Pardiez! siete arrepelones
Me pegaron a la entrada,
Mas yo di una puñada
A uno de los rascones.
Empero, si yo tal supiera,
No viniera,
Y si viniera, no entrára,
Y si entrára, yo mirára
De manera,
Que ninguno no me diera.
Mas andar, lo hecho, es hecho:
Pero todo bien mirado,
Ya que entré, neste abrigado,
Todo me sale en provecho.
Rehuélgome en ver estas cosas,
Tan hermosas,
Que está hombre bobo en vellas:
Véolas yo; pero ellas,
De lustrosas,
A nosotros son dañosas.
E quando se volta para a Rainha para continuar a declamação, Monroy Garcia, naquele arranque magistral, já silenciara a sala que o vai escutar reverentemente até à longa e calorosa ovação final.
Foi um momento singular nas nossas vidas. Não tornámos a representar, nenhum de nós fez carreira por esse lado. Toda uma longa e persistente preparação – ensaios a perder de vista, inúmeros conselhos repetidos à exaustão, horas e horas a afinar o gesto ou a colocar a voz – dera os seus frutos, estava extinta. Sabia a pouco mas era assim.
Mas ficou-me sempre a ideia, que apenas hoje publico, que o incomparável desempenho do José Jaime Monroy Garcia no papel do Vaqueiro do Auto da Visitação de Gil Vicente, foi um ponto muito importante no êxito que, reconhecidamente, o Batalhão de Alunos do Colégio Militar teve na visita que fez à capital espanhola – nesse já remoto ano de 1950.
Eduardo Zúquete